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Chico diz que vota em Lula de novo
Decepcionado com o PT, Chico critica oposição que trata Lula como um "vagabundo que deve voltar à senzala'
João Wainer
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Chico Buarque, em sua cobertura no Leblon, durante entrevista que concedeu à Folha |
FERNANDO DE BARROS E SILVA
EDITOR DE BRASIL
"É duro jogar na defesa." Foi esse o comentário bem-humorado
que Chico Buarque fez assim que
terminou a primeira parte de uma
entrevista feita em dois tempos,
no domingo à noite e na segunda-feira à tarde, no seu apartamento
no Leblon. O compositor se referia à defesa que acabara de fazer
do governo Lula.
Mas Chico Buarque não sabe,
não gosta e não joga na defesa.
Como no futebol, que, perto de
completar 62 anos, em junho próximo, continua praticando três
vezes por semana, Chico partiu
logo para o ataque. Disse que o escândalo do mensalão o deixou,
sim, decepcionado com o governo e é desastroso para o PT. Mas
disse com ênfase ainda maior que
as críticas da oposição e de parte
da mídia a Lula exorbitaram tanto
no tom quanto no conteúdo e são,
por isso, inaceitáveis.
Mais ainda, Chico vê o recrudescimento do preconceito de
classe contra o presidente: "Como
se fosse uma concessão, deixaram
o Lula assumir. "Agora sai já daí,
vagabundo!". É como se estivessem despachando um empregado
a quem se permitiu esse luxo de
ocupar a Casa Grande", diz Chico.
Há no PT a
idéia de que ou
você é petista ou
é calhorda, assim como o PSDB
acha que você ou é tucano ou é burro
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"Carioca", que chega hoje às lojas, está distante oito anos do CD
anterior, "As Cidades", de 1998.
No meio do caminho, o também
escritor lançou o romance "Budapeste" (2003). Depois da Copa, ele
deve retornar aos palcos apresentando o novo trabalho pelo país.
Folha - No fim de 2004, em entrevista à Folha, você via uma onda de
ódio aos pobres e de ódio a Lula no
país. Entre aquele diagnóstico e a
situação de hoje houve a crise do
mensalão. Você está decepcionado? O que mudou no governo Lula?
Chico Buarque - É claro que esse
escândalo abalou o governo, abalou quem votou no Lula, abalou
sobretudo o PT. Para o partido o
escândalo é desastroso. Espero
que disso tudo possa surgir um
partido mais correto, menos arrogante. No fundo, sempre existiu
no PT a idéia de que você ou é petista ou é um calhorda. Um pouco
como o PSDB acha que você ou é
tucano ou é burro [risos].
Agora, a crítica que se faz ao PT
erra a mão. Não só ao PT, mas
principalmente ao Lula. Quando
a oposição vem dizer que se trata
do governo mais corrupto da história do Brasil, é preciso dizer "espera aí". Quando aquele senador
tucano canastrão vai para a tribuna do Senado dizer que vai bater
no Lula, dar porrada, quando
chamam o Lula de vagabundo, de
ignorante, aí estão errando muito
a mão. Governo mais corrupto da
história? Onde está o corruptômetro? É preciso investigar. Tem
que punir, sim. Mas vamos entender melhor as coisas.
Folha - Como assim?
Chico - Pergunte a qualquer pequeno empresário como faz para
levar adiante seu negócio. Ele é
tentado o tempo todo a molhar a
mão do fiscal para não se estrepar.
O mesmo vale para o guarda de
trânsito. E assim sucessivamente.
A gente sabe que a corrupção no
Brasil está em toda a parte. E vem
agora esse pessoal do PFL, justamente eles, fazer cara de ofendido, de indignado. Não vão me comover. Eles fazem o papel da oposição, está certo. O PT também fez
o "Fora FHC", uma besteira.
Mas o preconceito de classe
contra o Lula continua existindo
-e em graus até mais elevados. A
maneira como ele é insultado eu
nunca vi igual. Acaba inclusive
sendo contraproducente. O sujeito mais humilde ouve e pensa:
"Que história é essa de burro!? De
ignorante!? De imbecil!?". Não me
lembro de ninguém falar coisas
assim antes, nem com o Collor.
Vagabundo! Ladrão! Assassino!
-até assassino eu já ouvi.
Fizeram o diabo para impedir
que o Lula fosse presidente. Inventaram plebiscito, mudaram a
duração do mandato, criaram a
reeleição. Finalmente, como se
fosse uma concessão, deixaram o
Lula assumir. "Agora sai já daí,
vagabundo!" É como se estivessem despachando um empregado
a quem se permitiu esse luxo de
ocupar a Casa Grande. "Agora
volta pra senzala!" Eu não gostaria que fosse assim.
Folha - Você acredita que o Lula
seja de fato visto como uma ameaça pelos mais ricos?
Chico - A economia, na verdade,
não vai mudar se o presidente for
um tucano. A coisa está tão atada
que honestamente não vejo muita
diferença entre um próximo governo Lula e um governo da oposição. Mas o país deu um passo
importante elegendo o Lula. Considero deseducativo o discurso
em voga: "Tão cedo esse caras não
voltam, eles não sabem fazer, não
são preparados, não são poliglotas". Acho tudo isso muito grave.
Folha - Você vai votar no Lula?
Chico - Hoje eu voto no Lula. Vou
votar no Alckmin? Não vou. Acredito que, apesar de a economia estar atada como está, ainda há uma
margem para investir no social
que o Lula tem mais condições de
atender. Vai ficar devendo, claro.
Já está devendo. Precisa ser cobrado. Ele dizia isso: "Quero ser cobrado, vocês precisam me cobrar,
não quero ficar lá cercado de puxa-sacos". Ouvi isso dele na última vez que o vi, antes de ele tomar
posse, num encontro aqui no Rio.
Folha - Vários artistas andaram
criticando o PT, o governo e Lula. O
meio artístico, ao que parece, não
vai mais embarcar no "Lula lá".
Chico - Pelo que eu ando lendo, a
grande maioria dos artistas está
contra o Lula. Tenho a missão de
contrabalançar um pouco isso [risos]. Há também entre os artistas
um pouco daquela competição:
quem vai falar mais mal do presidente? Mas concordo em parte
com o Caetano. Em parte.
Quando ele fala que as pessoas
do atual governo se cercam da aura de esquerda para justificar seus
atos e reivindicar para si uma posição superior à dos demais, tudo
isso também vale para o governo
anterior. Os tucanos costumam
carregar essa aura de esquerda
com muito zelo. Volta e meia os
vemos dizendo que foram contra
a ditadura, que são intelectuais de
esquerda. Fernando Henrique foi
eleito como candidato de centro-esquerda. Na época a vice entregue ao PFL parecia algo estranho.
Depois se provou que não era.
As pessoas se servem do passado de esquerda como se fosse um
título, um adorno. Na prática política essa identidade não funciona mais. Mas não funciona não só
porque as pessoas viraram casaca.
A história levou para isso. Levou o
PSDB a se tornar o que é e obrigou
o PT a abdicar de qualquer veleidade socialista ou revolucionária.
Folha - O que você acha do PSOL e
dessa turma que deixou o PT fazendo críticas pela esquerda?
Chico - Percebo nesses grupos
um rancor que é próprio dos ex:
ex-petista, ex-comunista, ex-tudo. Não gosto disso, dessa gente
que está muito próxima do fanatismo, que parece pertencer a
uma tribo e que quando rompe
sai cuspindo fogo. Eleitoralmente,
se eles crescerem, vão crescer para
cima do PT e eventualmente ajudar o adversário do Lula.
Folha - Como você vê a atuação
da mídia no escândalo do mensalão? Tem gente que ainda diz que a
mídia criou ou inventou essa crise.
Chico - Não acho que a mídia tenha inventado a crise. Mas a mídia ecoa muito mais o mensalão
do que fazia com aquelas histórias
do Fernando Henrique, a compra
de votos, as privatizações. O Fernando Henrique sempre teve
uma defesa sólida na mídia, colunistas chapa-branca dispostos a
defendê-lo. O Lula não tem. Pelo
contrário, é concurso de porrada
para ver quem bate mais.
Folha - O rumo que tomou o Brasil
e o mundo o faz se sentir derrotado? A sua geração perdeu?
Chico - É evidente que parte da
minha geração que chegou ao poder não lutou a vida inteira para
isso. Eu vou dizer: até mesmo pessoas que hoje são execradas publicamente, como o Zé Dirceu...
Não tenho maior simpatia pelo
Zé Dirceu, não assinei manifesto
em defesa dele, acho que ele errou, que ele tem culpa, sim, por
tudo o que aconteceu, mas eu respeito uma pessoa que num determinado momento entregou a sua
vida, jogou tudo o que tinha em
nome de uma causa, do país.
Como o Zé Dirceu eu poderia
citar outros nomes que chegaram
ao poder, mas chegaram despidos
daquele sonho em nome do qual
eles lutaram a vida toda. Quem
sabe para chegar ao poder tiveram justamente que se render ao
pragmatismo. A pessoa que chega
ao poder é um pouco um fantasma daquela que deu a vida por algo que não se realizou.
Folha - O público mais jovem tem
interesse pelo que você e sua geração fazem hoje? O que mudou na
recepção do seu trabalho?
Chico - Mudou muita coisa. Para
as pessoas mais velhas, as músicas
costumam ter história, lastro, estão ligadas à vida de cada um ou
relacionadas a momentos do país.
É comum ouvir "isso me lembra
as Diretas-Já, isso me lembra Geisel, isso me lembra o Festival da
Record". Para a garotada não há
nada disso. Para eles sou músico
de um passado só. Outro dia um
jovem me disse: "Adoro aquela
sua música". "Qual?", perguntei:
"Com Açúcar, com Afeto" [risos].
A música tem 40 anos!.
Folha - É uma jovem senhora, mas
ainda chama a atenção.
Chico - Isso na verdade é cíclico.
Nos anos 80, em determinado
momento que uma parte expressiva da mídia flertou com muito
entusiasmo com uma certa idéia
de internacionalização da cultura
e de desbunde com o mercado,
parecia que a música da gente já
era. Nacional, só rock e olhe lá. Eu
fui considerado completamente
ultrapassado. Depois voltou. Daqui a pouco pode ser que não interesse mais. A gente continua fazendo -existe uma teimosia aí. E
também, a essa altura, uma natural despreocupação com o sucesso imediato. Mesmo porque o sucesso imediato não acontece.
Folha - Você considera que o novo
CD exige uma digestão mais lenta?
Chico - Você e outros comentaram que, a exemplo do anterior, o
disco não é fácil de se gostar na
primeira audição. Talvez não seja
mesmo. Eu aposto um pouquinho no fato de que a pessoa vá ouvir várias vezes.
É difícil no meu caso ter uma
música que seja um grande sucesso, que toque no rádio -eu não
conto com isso. Não estou preocupado em fazer, como diziam os
italianos, uma música "orecciabile", "orelhável". No final dos anos
60, quando morei em Roma, eles
queriam que eu fizesse outra música como "A Banda", "orecciabile". E eu acabei não fazendo outras músicas "orelháveis", frustrando muitas expectativas. Hoje
não existe nenhuma expectativa,
nem minha nem de ninguém, de
que eu precise ou vá compor uma
música "orecciabile".
É natural que haja um tempo
maior e um apuro maior, não
apenas no processo de composição mas também no trabalho de
estúdio, durante os arranjos, as
gravações. É sem dúvida um trabalho mais sério, mais cuidado do
que era há anos atrás. Não quero
dizer que isso resulte numa música "impopular" de propósito,
uma música sofisticada demais
-não acho isso-, mas é uma
música que não tem compromisso com o sucesso. Isso talvez a torne mais longeva.
Folha - Você transmite a sensação
de que gostaria de ver seu trabalho
melhor compreendido.
Chico - Sei que é difícil falar do
disco. Até para mim é difícil. Em
jornal, crítico de música geralmente é crítico de letra. É compreensível que seja assim -a letra
vai impressa, o crítico destaca este
ou aquele trecho. Funciona assim.
Eu cada vez mais dou importância à música e tenho vontade de
dizer: "Olha, só fiz essa letra porque essa música pedia. Isso não é
poesia, é canção". Enfim, fico um
pouquinho chateado com essas
coisas, mas sei que é difícil. Como
é que vai imprimir uma partitura
no jornal e explicar aos leitores?
Folha - Você volta a fazer shows?
Chico - Tenho vontade de fazer,
sim. Depois da gravação, do convívio com os músicos no estúdio
essa vontade aparece. É o passo
seguinte, de certa forma natural.
Vamos ver depois da Copa.
Folha - Você acaba de gravar 12
programas dirigidos por Roberto
de Oliveira, que mesclam entrevistas inéditas e imagens de arquivo
cobrindo praticamente toda a sua
carreira. Chama a atenção a maneira desinibida com que você acabou
passando a limpo a sua trajetória.
O que o levou a fazer esse balanço?
Chico - O Roberto foi me engabelando [risos]. A idéia inicial
eram dois ou três programas.
Achei que a proposta de recuperar imagens de arquivo que de outra forma ficariam perdidas justificava o trabalho. Mas só fazia
sentido se isso viesse acompanhado de algo mais.
Folha - Esses documentários dos
anos 70 e 80 que os programas recuperam chamam atenção pelo
despojamento, pelo ambiente caseiro, de ensaios descontraídos. Vivia-se em outro planeta, não?
Chico - Fiquei muito tempo fora
da Globo durante a ditadura, primeiro porque eles me vetaram,
depois, quando me chamaram,
porque eu não queria. Esses programas eram um contraponto à
programação e à estética da Globo. Mostravam os artistas gravando, bebendo, era uma coisa meio
mal-acabada, meio alternativa.
Alguns discos, não apenas os
meus, também tinham esse clima.
Era uma bagunça. Ouvindo hoje a gente tem a sensação de que o
cantor bebeu, o maestro fumou e
o produtor cheirou, não necessariamente nessa ordem [risos].
Era muita loucura, o estúdio
cheio de gente, garrafas pelo chão,
uma festa. Hoje você entra num
estúdio e é aquela coisa ascética.
Parece um hospital. Não se come,
não se bebe, não se fuma, não se
faz nada ali dentro.
Naquela época havia um certo
valor nessa transgressão, nesse
desregramento. Você ia gravar
daquele jeito, todos no estúdio estavam daquele jeito e provavelmente quem ia ouvir os discos
também estava daquele jeito. Não
deixava de ser uma maneira de
enfrentar e suportar a repressão.
Hoje não faria nenhum sentido
gravar naquelas condições.
Folha - Era uma época mais simpática?
Chico - Não acho nada simpática. Não dá para abstrair a ditadura. Uma coisa é Maio de 68 na
França. Outra, completamente
distinta, o nosso dezembro de 68.
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