São Paulo, sábado, 06 de maio de 2006

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CRÍTICA

Há beleza em canções não-assoviáveis

LUIZ FERNANDO VIANNA
DA SUCURSAL DO RIO

"Carioca" dá razão a quem diz que Chico Buarque não faz músicas como no passado -os sambas contagiantes, as canções de amor rasgado, as construções políticas. Mas isso não é um defeito.
Depois que passou a alternar períodos dedicados à música com outros voltados para a literatura, ele reforçou características que não eram predominantes em sua obra e que são, digamos, menos radiofônicas.
Uma das características é a assimetria das melodias e dos arranjos. "Outros Sonhos" é um fox temperado com o acordeom nordestino de Dominguinhos. "Ode aos Ratos" é um xote com programação eletrônica. "Porque Era Ela, Porque Era Eu" é uma valsa de notas longas antecedida pelo vigor à Argentina do par cello-bandoneón. "Bolero Blues" -melodia de Jorge Helder que Chico quis letrar por achá-la iletrável - tem os dois gêneros do título, além de fado, choro e curvas inclassificáveis.
As letras mudaram também, pois Chico nunca fez letra antes de melodia, esta sempre gerando aquela. Recorrentes na sua produção recente ("Outra Noite", "Sonhos Sonhos São", "A Moça do Sonho"), os sonhos voltam na linda "Outros Sonhos", que tem suscitado pudica polêmica por insinuar a liberação das drogas: "Maconha só se comprava/ Na tabacaria/ Drogas na drogaria".
Também é onírico o clima de "Imagina", uma das mais belas parcerias de Tom e Chico, agora gravada em dueto com uma Mônica Salmaso impecável.
E, se não está exatamente sonhando, é um observador algo distanciado, como um narrador de romance ou um amante sem desespero, que mira as mulheres nas letras em que há uma "ela". São as divas de cinema que excitavam o adolescente Chico em "As Atrizes"; a moça que se faz de diva, flertando sem se entregar, em "Ela Faz Cinema"; a musa inalcançável no tempo e no espaço em "Bolero Blues"; a mulher que ofusca tudo à volta quando sai do mar em "Renata Maria".
Em "Subúrbio", a música mais afinada com o título do CD, assimetria e distância estão confirmadas: em meio a um suave choro-canção, Chico clama: "Dança teu funk, o rock/ forró, pagode, reggae/ Teu hip hop/ Fala na língua do rap". Mas ele reconhece que os bairros cariocas que cita não são o seu habitat: "Lá não tem brisa/ Não tem verde-azuis"; "Lá não tem claro-escuro/ A luz é dura/ A chapa é quente".
O Rio perpassa outras faixas, como o samba "Dura na Queda", enfezado como Elza Soares, para quem foi feito. Ou "Leve", bolero de verão em que dor e amor rimam sob o sol carioca. Ou, ainda, "Ela Faz Cinema", deliciosa bossa nova que, não por acaso, remete aos sambas dos anos 60 de Chico.
Como já não havia em "As Cidades", não há um clássico instantâneo em "Carioca". Há 12 músicas de alto nível, que, salvo uma ou outra exceção, não são facilmente assoviáveis, mas que exalam beleza e inteligência a cada audição. Quem te viu, quem te vê? Não. Chico continua muito bem e em movimento.


Carioca
    
Artista: Chico Buarque
Gravadora: Biscoito Fino
Quanto: R$ 40 e R$ 60 (CD + DVD)


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