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RODAPÉ
Antidogmatismo em tempo de banalidade da crítica
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
"Desisti da crítica. Escrevia
era para conversar, não
para julgar. Homem só, acostumado com a solidão e nela me
comprazendo, poucas oportunidades me eram oferecidas de um
papo acerca do que lia e me comovia."
Essas palavras de Sérgio Milliet
(1898-1966) foram extraídas do livro "De Ontem, de Hoje, de Sempre II" (publicado originalmente
em 1962) e estão reproduzidas
num volume de crônicas que acaba de ser lançado pela Global,
com organização de Regina Salgado Campos. Sugerem renúncia
ou confissão de fracasso; no caso
de um autor como Milliet, entretanto, significam decoro e antidogmatismo intelectual.
Sociólogo, crítico literário e de
artes plásticas, Milliet assinou regularmente, a partir de 1940, uma
das mais prestigiadas colunas da
imprensa cultural brasileira, com
comentários e reflexões que seriam reunidos nos dez volumes
de seu "Diário Crítico".
A maior parte dos textos selecionados para a antologia "Sérgio
Milliet" foi tirada desse conjunto.
E, pelo fato de o livro pertencer a
uma coleção intitulada "Melhores
Crônicas", a escolha da organizadora recaiu sobre artigos de feição
memorialística.
Ainda assim, estão presentes
análises importantes de obras que
acabavam de ser publicadas por
Clarice Lispector em 1944 ("Perto
do Coração Selvagem") e por João
Cabral de Melo Neto em 1945 ("O
Engenheiro") -autores hoje
consagrados, mas que representavam um desafio para quem teve
a coragem de escrever no calor da
hora.
O fato de conscientemente deixar em segundo plano a "crítica
militante", contudo, permite lançar luz sobre um aspecto talvez
mais relevante da obra Milliet: seu
método antimetódico de escrita.
Nesse sentido, Regina Salgado
Campos foi extremamente arguta
ao abrir o volume com um comentário de Milliet sobre o "Jornal de Crítica" de Álvaro Lins, lançado em 1942:
"Mostra-se Álvaro Lins contrário às sínteses "definitivas e inapeláveis" a que "o espírito de totalidade" conduz. (...) Um bom crítico é,
em virtude mesmo da sua capacidade de penetração, e de entendimento, em virtude de sua inteligência, um cético. Parte à procura
da Verdade, na melhor das hipóteses, mas o encontro de mil verdades diferentes e a compreensão
delas o levam a tentar apenas a
descoberta de sua verdade própria".
Aquilo que diz sobre Álvaro
Lins também se aplica a ele. Tradutor dos "Ensaios" de Montaigne, Milliet incorporou em seus
próprios ensaios o ceticismo
montaigniano que consiste na
"hostilidade às explicações fáceis
e simplistas", geralmente mascaradas pelo mencionado "espírito
de totalidade".
E, num texto de 1945, ele comenta uma frase de Gide -"A
necessidade da opção me foi sempre intolerável"- que sintetiza
sua imagem ideal do artista ou intelectual refratário a engajamentos imediatos, "para quem a opção implica um acordo íntimo, essa convicção amadurecida que
nasce da reflexão serena".
(Aliás, diga-se entre parênteses,
uma excelente análise da presença de Montaigne e Gide na obra
de Milliet está no livro "Ceticismo
e Responsabilidade", também de
Regina Salgado Campos, publicado pela Anna Blume.)
A coletânea está repleta de deliciosas experiências de viagem de
um escritor de ascendência francesa, que passou parte da vida na
Europa e conviveu com protagonistas do modernismo brasileiro
-como o futurista suíço Blaise
Cendrars, descrito como inveterado bebedor de chope nos bistrôs parisienses. E, em alguns momentos, as crônicas têm sabor
anacrônico, como na comparação de São Paulo (uma "cidade pitoresca" em 1951) com Roma e
Paris.
Entretanto, o que sobressai nesses ensaios digressivos é a profissão de fé numa forma equilibrada
de crítica, na qual "a compreensão do fenômeno artístico não
implica a aprovação irrestrita dos
resultados". Nada melhor do que
ler Milliet num momento em que
críticos do segundo escalão vociferam contra a apatia da literatura, ridiculamente convencidos da
própria radicalidade.
Manuel da Costa Pinto escreve quinzenalmente nesta coluna
Sérgio Milliet - Melhores
Crônicas
Autora: Regina Salgado Campos (org.)
Editora: Global
Quanto: R$ 38 (336 págs.)
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