São Paulo, sábado, 06 de maio de 2006

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RODAPÉ

Antidogmatismo em tempo de banalidade da crítica

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

"Desisti da crítica. Escrevia era para conversar, não para julgar. Homem só, acostumado com a solidão e nela me comprazendo, poucas oportunidades me eram oferecidas de um papo acerca do que lia e me comovia."
Essas palavras de Sérgio Milliet (1898-1966) foram extraídas do livro "De Ontem, de Hoje, de Sempre II" (publicado originalmente em 1962) e estão reproduzidas num volume de crônicas que acaba de ser lançado pela Global, com organização de Regina Salgado Campos. Sugerem renúncia ou confissão de fracasso; no caso de um autor como Milliet, entretanto, significam decoro e antidogmatismo intelectual.
Sociólogo, crítico literário e de artes plásticas, Milliet assinou regularmente, a partir de 1940, uma das mais prestigiadas colunas da imprensa cultural brasileira, com comentários e reflexões que seriam reunidos nos dez volumes de seu "Diário Crítico".
A maior parte dos textos selecionados para a antologia "Sérgio Milliet" foi tirada desse conjunto. E, pelo fato de o livro pertencer a uma coleção intitulada "Melhores Crônicas", a escolha da organizadora recaiu sobre artigos de feição memorialística.
Ainda assim, estão presentes análises importantes de obras que acabavam de ser publicadas por Clarice Lispector em 1944 ("Perto do Coração Selvagem") e por João Cabral de Melo Neto em 1945 ("O Engenheiro") -autores hoje consagrados, mas que representavam um desafio para quem teve a coragem de escrever no calor da hora.
O fato de conscientemente deixar em segundo plano a "crítica militante", contudo, permite lançar luz sobre um aspecto talvez mais relevante da obra Milliet: seu método antimetódico de escrita. Nesse sentido, Regina Salgado Campos foi extremamente arguta ao abrir o volume com um comentário de Milliet sobre o "Jornal de Crítica" de Álvaro Lins, lançado em 1942:
"Mostra-se Álvaro Lins contrário às sínteses "definitivas e inapeláveis" a que "o espírito de totalidade" conduz. (...) Um bom crítico é, em virtude mesmo da sua capacidade de penetração, e de entendimento, em virtude de sua inteligência, um cético. Parte à procura da Verdade, na melhor das hipóteses, mas o encontro de mil verdades diferentes e a compreensão delas o levam a tentar apenas a descoberta de sua verdade própria".
Aquilo que diz sobre Álvaro Lins também se aplica a ele. Tradutor dos "Ensaios" de Montaigne, Milliet incorporou em seus próprios ensaios o ceticismo montaigniano que consiste na "hostilidade às explicações fáceis e simplistas", geralmente mascaradas pelo mencionado "espírito de totalidade".
E, num texto de 1945, ele comenta uma frase de Gide -"A necessidade da opção me foi sempre intolerável"- que sintetiza sua imagem ideal do artista ou intelectual refratário a engajamentos imediatos, "para quem a opção implica um acordo íntimo, essa convicção amadurecida que nasce da reflexão serena".
(Aliás, diga-se entre parênteses, uma excelente análise da presença de Montaigne e Gide na obra de Milliet está no livro "Ceticismo e Responsabilidade", também de Regina Salgado Campos, publicado pela Anna Blume.)
A coletânea está repleta de deliciosas experiências de viagem de um escritor de ascendência francesa, que passou parte da vida na Europa e conviveu com protagonistas do modernismo brasileiro -como o futurista suíço Blaise Cendrars, descrito como inveterado bebedor de chope nos bistrôs parisienses. E, em alguns momentos, as crônicas têm sabor anacrônico, como na comparação de São Paulo (uma "cidade pitoresca" em 1951) com Roma e Paris.
Entretanto, o que sobressai nesses ensaios digressivos é a profissão de fé numa forma equilibrada de crítica, na qual "a compreensão do fenômeno artístico não implica a aprovação irrestrita dos resultados". Nada melhor do que ler Milliet num momento em que críticos do segundo escalão vociferam contra a apatia da literatura, ridiculamente convencidos da própria radicalidade.


Manuel da Costa Pinto escreve quinzenalmente nesta coluna
Sérgio Milliet - Melhores Crônicas
     Autora: Regina Salgado Campos (org.) Editora: Global Quanto: R$ 38 (336 págs.)


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