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FERREIRA GULLAR
Os urinóis de Marcel Duchamp
Duchamp, irreverente que fosse, jamais teria posto bigodes e barbas na "Mona Lisa" original
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FOI EM 1917 que Marcel Duchamp enviou para o salão da
Associação de Artistas Independentes, de Nova York, um urinol
de louça (desses que se fabricam em
série para usar em banheiros masculinos) a que pôs o nome de "Fontaine". Faz, portanto, 90 anos do
gesto irreverente que teria sérias
conseqüências no curso da arte do
século 20. Foi o primeiro ready-made.
O júri do salão hesitou em aceitar
como arte aquela "obra", assinada
por um tal de Mutt, que ninguém conhecia. Mas, como se tratava de uma
entidade de artistas independentes
-ou seja, contrários aos valores tradicionais da arte-, pegaria mal rejeitá-la. Por isso, foi aceita, mas posta no fundo do salão da exposição,
atrás de um tabique. Duchamp, que
pertencia à Associação, ficou furioso
e desligou-se dela.
O urinol -que até aquele momento não tinha maior importância- foi
deixado num canto por seu autor e,
com o tempo, sumiu ou se quebrou.
Mais tarde, Duchamp decidiu "realizar" outras "Fontaine"; comprou
outros urinóis semelhantes e os assinou sob o mesmo pseudônimo.
Explico a origem dos ready-mades, baseando-me numa entrevista
de Fernand Léger à revista francesa
"Cahiers d" Art". Conta ele que, em
1914, visitava uma exposição de indústria naval, em Paris, na companhia de Brancusi e Duchamp, quando se depararam com uma enorme
hélice de navio. Duchamp, entusiasmado com a beleza da hélice, perguntou a Brancusi, escultor, se era
capaz de fazer algo semelhante. Ele
sorriu e se afastou, seguido por Léger, enquanto Duchamp continuou
parado diante da hélice. Talvez não
seja exagero meu supor que esse fato
-a descoberta de que um objeto industrial pode ser expressivo- tenha
levado Duchamp a inventar os
ready-mades.
Claro que outros fatores concorreram para o surgimento do ready-made, como, creio eu, a crise das artes artesanais na sociedade industrial que se expandia. O urinol de
Duchamp seria a expressão sarcástica da morte daquelas artes e, ao
mesmo tempo, um modo de gozar a
pretensão dos artistas que ainda se
julgavam criadores de obras de arte.
Essa questão, que envolve a crise
da arte e as novas técnicas industriais, estará presente no trabalho de
Duchamp ao longo de sua vida, mesmo porque, contraditoriamente, o
inventor do ready-made nunca
abandonou o trabalho artesanal, como comprovam duas obras dele: "O
Grande Vidro" (1915-1923) e "Étant
Donnés" (1946-1966), ambas inacabadas; sem falar na "Box-in-a-valise", caixa em que juntou miniaturas
de suas principais obras.
Não obstante, talvez por atender a
uma necessidade da época, foi o
ready-made que ditou o rumo predominante na arte internacional das
cinco últimas décadas, marcada
muitas vezes por manifestações em
que a rebeldia se confunde com o
niilismo e, particularmente, com a
negação da própria arte. Deu-se menos atenção ao autor do "Étant Donnés", quando libera suas fantasias
eróticas numa poética de sonho, do
que ao iconoclasta que pintou bigodes e barbas numa reprodução da
Mona Lisa. Noutras palavras, o Duchamp imitado e seguido foi o que
tentou desmoralizar a aura da obra-prima de Da Vinci; só que nenhum
de seus seguidores, possivelmente,
terá se perguntado se o cara desabusado, que fez isso numa reprodução
da Mona Lisa, teria feito o mesmo
no original. Duvido muito.
Aliás, vem a calhar um fato ocorrido, ano passado, em Paris, quando
um artista performático de nome
Pierre Pinoncelli quebrou a marretadas um dos urinóis "Fontaine" de
Duchamp, pertencente ao acervo do
Centro Pompidou. Um ato de irreverência um pouco mais violento
que o dele, quando adulterou a obra-prima de Da Vinci; e mais, enquanto
Duchamp nada sofrera, o jovem performático foi processado.
Perante o tribunal, o advogado de
defesa teria alegado que Pinoncelli
nada mais fizera que repetir a irreverência de seu mestre, com o atenuante de que, enquanto a Mona Lisa tinha sido feita por Da Vinci, o urinol destruído era um ready-made,
ou seja, já estava feito quando Duchamp o assinou. Mesmo assim, o
Centro Pompidou insistiu em ser indenizado pela perda da obra que, no
mercado de arte, valeria 2,8 milhões, enquanto a defesa alegava
que consultara o catálogo de um fabricante de sanitários e lá o preço
do urinol era de apenas 83.
Por isso, afirmo que Duchamp,
por mais irreverente que fosse, jamais teria posto bigodes e barbas
na obra original, que pertence ao
acervo do Louvre. Liso como era,
correria o risco de passar o resto de
seus dias na cadeia.
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