São Paulo, terça-feira, 06 de maio de 2008

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Grupo enfrenta pane e público escasso

Na Bahia, a hélice do barco que levava os artistas quebrou, o que os levou a ficar um dia e uma noite à deriva até o resgate

Grupo virou atração em rádio e jornal locais, mas atraiu poucos admiradores: "Nosso público não é daqui, é de São Paulo", diz artista

Márcia Vaitsman/Divulgação
Os artistas Luísa Nóbrega e Deyson Gilbert fazem performance nas dunas
da foz do rio São Francisco, perto de Piaçabuçu (AL)


SILAS MARTÍ
ENVIADO ESPECIAL AO NORDESTE

Sob o sol de 34C, uma fila se forma em frente à rádio Grande Rio de Petrolina (PE). É assim toda manhã de sábado, quando moradores cercados por bodes do lado de fora esperam a hora de entrar no estúdio, decorado com um retrato de Roberto Carlos, para tocar o instrumento que conhecem. Mas desta vez o roteiro foi diferente.
O locutor interrompe a gincana, que sorteia discos de forró a quem acertar o canto de um pássaro, e anuncia a chegada de uma expedição de artistas de São Paulo, destacando a primeira mulher a passar pela cidade de olhos vendados -voluntariamente, frisou.
Ela é a atriz Luísa Nóbrega, 23, que, junto com os artistas plásticos Julio Meiron, 26, Deyson Gilbert, 23, Márcia Vaitsman, 35, e o biólogo Nabor Kisser, 34, deixou a capital paulista para percorrer em duas semanas o leito do rio São Francisco, de Januária (MG), perto da nascente, até a foz no litoral alagoano. A Folha acompanhou a última parte do trajeto, de Petrolina, onde se juntou ao grupo, até o mar.
São todos artistas jovens, com inserção mínima no mercado e poucas exposições no currículo, que fizeram a viagem com verbas da Petrobras.
Durante a excursão, Meiron e Gilbert embrulhavam o que viam pela frente com uma espuma sintética amarelo brilhante. Vaitsman gravou vídeos e fez flutuar sobre o rio três balões brancos de látex, que simulavam luas cheias. Nóbrega, a mulher vendada, fez do percurso uma performance: deficiente auditiva, decidiu tapar também os olhos para construir memórias com sentidos minimizados. Kisser fotografou e escreveu um diário.
A idéia era levar arte contemporânea a um cenário inóspito e fazer contato com um público alheio ao circuito dos museus paulistanos, a exemplo do tipo de expedição que, assim como residências e intercâmbios artísticos, prolifera nas artes plásticas (leia ao lado).
Eles teriam ficado mais tempo na água não fossem as barragens que impedem a navegação e uma pane que quase abortou o projeto. Perto de Carinhanha (BA), a hélice do barco quebrou -incidente atribuído ao temido caboclo d'água, entidade lendária que atormenta pescadores-, e o grupo navegou um dia à deriva até ser resgatado por um velho negro que criava porcos à beira do rio.
Meiron e Gilbert então revestiram o chiqueiro do amigo ribeirinho com a espuma que usam para acolchoar pedaços da paisagem do rio e do sertão.
"É trazer a noção de macio, de conforto, ao inóspito, lidar com a aspereza", diz Meiron, que embrulhou com espuma até o motor do barco.

Decepção
De Bom Jesus da Lapa (BA), onde o barco quebrado por fim atracou, viajaram dez horas de carro por estradas esburacadas até Petrolina. Numa noite de lua cheia e céu pesado de estrelas, dois homens carregaram o cilindro de ferro com gás mais leve que o ar para fazer subir ao céu as esferas de Vaitsman.
Com o vento, uma delas caiu e estourou no choque com os pedregulhos da orla. Apesar da entrevista na rádio e de os artistas terem estampado a capa da "Gazeta do São Francisco", ninguém apareceu para ver. Só crianças que brincavam perto dali vieram ver curiosas o que estava acontecendo.
"Arte não é teoria, é essa experiência", disse Vaitsman horas depois de desmontar as luas. Ninguém estranhou um bote de pesca enrolado em espuma, de Meiron e Gilbert, nem os balões de látex.
Agora o grupo quer montar uma exposição com os resultados da viagem. "Nosso público não é daqui, é de São Paulo", admite Meiron, sem esconder a decepção com a mostra na orla.
"Estaria vazio mesmo que a gente estivesse esquartejando um cavalo", arrematou Kisser. Com ou sem cavalo, fica claro que esse tipo de trabalho, à revelia da proposta, só funciona no circuito contestado pelos artistas. Seja qual for a força das obras, interessa que elas sejam vistas em São Paulo, onde ganham o verniz exótico do atrito entre natural e industrial.
Depois de atravessar a paisagem esturricada, de casas de pau-a-pique que parecem brinquedo perto das barragens faraônicas, o grupo chega à eclusa de Sobradinho (BA). Lá em cima, Nóbrega e Gilbert estendem um pano negro entre si, amarrando cada ponta na cabeça. Eles se jogam para trás e se equilibram por uns instantes, entre o rio represado e uma queda livre de 70 m.
A performance se repetiu nas dunas da foz e outros pontos. O drama, que pode parecer até frívolo no sertão, aparece nas fotografias inchado pela vista agreste e sedutora ao redor. Difícil, no entanto, sustentar que tudo isso não desmorona longe do São Francisco.

Imensidão seca
Segue monótona a paisagem da caatinga. Paulo Afonso (BA), Canindé do São Francisco (SE) e Piranhas (AL) formam uma imensidão seca de cactos e bodes que culmina em explosões verdes às margens do rio. Um aqueduto inacabado, parte da polêmica transposição das águas, esconde a cruz de um operário que morreu na construção. A quebrar o traço do horizonte, só colunas densas de nuvens que fundem céu e terra: tempestades sertanejas.
Em Penedo (AL), à beira do rio, o grupo alugou o último barco que usou no trajeto. Nas margens, pescadores enrolam suas redes e mulheres lavam roupas. Entre dois braços de areia fina, o São Francisco deságua no mar azul. A mulher vendada descobre os olhos e se joga do barco para enxergar ali uma certeza só dela.


O jornalista SILAS MARTÍ viajou a convite da Petrobras.


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