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JOÃO PEREIRA COUTINHO
As caves austríacas
O que choca não é só a brutalidade dos crimes. É a dimensão espacial deles: cave, cave, cave
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VIRGEM SANTÍSSIMA: mas alguém é capaz de me explicar
o que se passa com a Áustria?
Sim, sei: crimes existem em toda a
parte, cometidos por todas as pessoas. Mas existe um padrão nos crimes austríacos que seria loucura
não notar.
Uns tempos atrás, o mundo ficou
em choque com a história de uma
criança de 10 anos que, certo dia, a
caminho da escola, foi seqüestrada
por um técnico de computadores.
A criança ficou na cave durante oito anos de recorrentes abusos. Seu
nome era Natascha Kampusch e a
história emocionou os europeus.
Não foi caso único. Nos arredores
de Linz, terra que no passado ficou
célebre por um certo austríaco de
bigodinho ridículo e particular ódio
aos judeus, uma mãe aplicou o mesmo tratamento às três filhas por sete
anos.
E, agora, cereja no topo do bolo:
Josef Fritzl, um eletricista que Lombroso teria enviado diretamente para a cadeia (que rosto, meu Deus,
que rosto!), encerrou a própria filha
na cave durante 24 anos e teve sete
filhos dela. Um deles morreu e foi
queimado pelo próprio pai/avô.
Três viveram com ele à superfície.
Três continuaram nas catacumbas
e, sabe-se agora, tinham de assistir
às violações da própria mãe.
Em todas essas histórias, o que
choca não é apenas a brutalidade
dos crimes. É a dimensão espacial
deles: cave, cave, cave. Se as coisas
continuam, não excluo que o mercado imobiliário passe a adotar a última moda: "Vende-se moradia com
quatro quartos, dois banheiros, uma
sala e uma cave austríaca". As caves
austríacas começam a ganhar fama
internacional.
Basta ler os jornais. Dia após dia, o
caso é acompanhado com uma mistura de incredulidade e horror. E a
pergunta, recorrente, na boca de jornalistas e leitores: como foi possível?
Os meus amigos fazem a mesma
pergunta. Eu escuto tudo e, sem pretender catequizar ninguém, acrescento: vocês já ouviram falar do problema do mal?
Ninguém ouviu. Ninguém quer
ouvir. A palavra "mal" não existe na
gramática deles. O mal é resquício
religioso, dizem alguns; para acreditar no mal é preciso acreditar em
Deus, porque o mal, na ortodoxia, é
um afastamento de Deus. Outros,
mais racionalistas, retomam Sócrates e relembram as lições do velho filósofo. O mal não existe; quando as
pessoas cometem maus atos, elas estão convictas de que cometem bons
atos. O mal é produto da ignorância
dos seres humanos, que se entregam
às maiores atrocidades porque desconhecem a luz da racionalidade.
E existe até uma minoria que prefere uma variante socrática mais
adaptável aos dias de hoje. Não existe mal; existem más circunstâncias
sociais, familiares, pessoais que explicam comportamentos "desviantes". O mal é fruto da pobreza. O mal
é fruto de pais autoritários (ou demasiado permissivos). O mal é fruto
da doença. O mal é loucura, o mal é
trauma.
Esquecendo a primeira tese, de
contornos claramente religiosos (e
subjetivos, e complexos), as duas últimas têm um ponto em comum:
elas desculpam o criminoso ao imputaram culpas a terceiros. Se a minha ignorância, ou a minha pobreza,
ou a minha doença, explicam os
meus comportamentos malignos,
eu não sou propriamente responsável por eles. Melhor: eu sou vítima
deles, exatamente como as vítimas
que eu mato ou torturo.
E, no entanto, nenhuma das teses
consegue desmentir a mais tenebrosa realidade: existem pessoas que
cometem atos de gravidade extrema
contra terceiros simplesmente porque querem e podem.
Não são pobres, nem doentes,
muito menos ignorantes: como diria
George Steiner, é possível encontrar
repetidamente casos de oficiais nazistas que escutavam uma ária de
Schubert ao jantar e, no dia seguinte, gaseavam tranqüilamente seres
humanos. A cultura não é passaporte para nada. Pode, aliás, representar o oposto: como acrescenta ainda
o mesmo Steiner, em paradoxo que
derrota qualquer humanista, o contato intenso com a alta cultura pode
tornar os homens insensíveis para a
realidade em volta. De que valem os
gritos de meros anônimos quando
nenhum deles será comparável ao
grito lancinante que Lear lança à sua
filha Cordélia?
Desculpar o criminoso com razões exteriores ao próprio pode sossegar algumas almas otimistas. Infelizmente, será apenas uma ilusão.
Uma ilusão que vai durar até ao dia
em que, numa cave sombria, o mal
que habita o coração dos homens
voltar a emergir. Sem disfarce, sem
desculpa e, pior para nós, sem qualquer explicação.
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