São Paulo, terça-feira, 06 de maio de 2008

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

As caves austríacas


O que choca não é só a brutalidade dos crimes. É a dimensão espacial deles: cave, cave, cave

VIRGEM SANTÍSSIMA: mas alguém é capaz de me explicar o que se passa com a Áustria? Sim, sei: crimes existem em toda a parte, cometidos por todas as pessoas. Mas existe um padrão nos crimes austríacos que seria loucura não notar.
Uns tempos atrás, o mundo ficou em choque com a história de uma criança de 10 anos que, certo dia, a caminho da escola, foi seqüestrada por um técnico de computadores.
A criança ficou na cave durante oito anos de recorrentes abusos. Seu nome era Natascha Kampusch e a história emocionou os europeus.
Não foi caso único. Nos arredores de Linz, terra que no passado ficou célebre por um certo austríaco de bigodinho ridículo e particular ódio aos judeus, uma mãe aplicou o mesmo tratamento às três filhas por sete anos.
E, agora, cereja no topo do bolo: Josef Fritzl, um eletricista que Lombroso teria enviado diretamente para a cadeia (que rosto, meu Deus, que rosto!), encerrou a própria filha na cave durante 24 anos e teve sete filhos dela. Um deles morreu e foi queimado pelo próprio pai/avô. Três viveram com ele à superfície. Três continuaram nas catacumbas e, sabe-se agora, tinham de assistir às violações da própria mãe.
Em todas essas histórias, o que choca não é apenas a brutalidade dos crimes. É a dimensão espacial deles: cave, cave, cave. Se as coisas continuam, não excluo que o mercado imobiliário passe a adotar a última moda: "Vende-se moradia com quatro quartos, dois banheiros, uma sala e uma cave austríaca". As caves austríacas começam a ganhar fama internacional.
Basta ler os jornais. Dia após dia, o caso é acompanhado com uma mistura de incredulidade e horror. E a pergunta, recorrente, na boca de jornalistas e leitores: como foi possível?
Os meus amigos fazem a mesma pergunta. Eu escuto tudo e, sem pretender catequizar ninguém, acrescento: vocês já ouviram falar do problema do mal?
Ninguém ouviu. Ninguém quer ouvir. A palavra "mal" não existe na gramática deles. O mal é resquício religioso, dizem alguns; para acreditar no mal é preciso acreditar em Deus, porque o mal, na ortodoxia, é um afastamento de Deus. Outros, mais racionalistas, retomam Sócrates e relembram as lições do velho filósofo. O mal não existe; quando as pessoas cometem maus atos, elas estão convictas de que cometem bons atos. O mal é produto da ignorância dos seres humanos, que se entregam às maiores atrocidades porque desconhecem a luz da racionalidade.
E existe até uma minoria que prefere uma variante socrática mais adaptável aos dias de hoje. Não existe mal; existem más circunstâncias sociais, familiares, pessoais que explicam comportamentos "desviantes". O mal é fruto da pobreza. O mal é fruto de pais autoritários (ou demasiado permissivos). O mal é fruto da doença. O mal é loucura, o mal é trauma.
Esquecendo a primeira tese, de contornos claramente religiosos (e subjetivos, e complexos), as duas últimas têm um ponto em comum: elas desculpam o criminoso ao imputaram culpas a terceiros. Se a minha ignorância, ou a minha pobreza, ou a minha doença, explicam os meus comportamentos malignos, eu não sou propriamente responsável por eles. Melhor: eu sou vítima deles, exatamente como as vítimas que eu mato ou torturo.
E, no entanto, nenhuma das teses consegue desmentir a mais tenebrosa realidade: existem pessoas que cometem atos de gravidade extrema contra terceiros simplesmente porque querem e podem.
Não são pobres, nem doentes, muito menos ignorantes: como diria George Steiner, é possível encontrar repetidamente casos de oficiais nazistas que escutavam uma ária de Schubert ao jantar e, no dia seguinte, gaseavam tranqüilamente seres humanos. A cultura não é passaporte para nada. Pode, aliás, representar o oposto: como acrescenta ainda o mesmo Steiner, em paradoxo que derrota qualquer humanista, o contato intenso com a alta cultura pode tornar os homens insensíveis para a realidade em volta. De que valem os gritos de meros anônimos quando nenhum deles será comparável ao grito lancinante que Lear lança à sua filha Cordélia?
Desculpar o criminoso com razões exteriores ao próprio pode sossegar algumas almas otimistas. Infelizmente, será apenas uma ilusão. Uma ilusão que vai durar até ao dia em que, numa cave sombria, o mal que habita o coração dos homens voltar a emergir. Sem disfarce, sem desculpa e, pior para nós, sem qualquer explicação.


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