São Paulo, quinta-feira, 06 de maio de 2010

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NINA HORTA

Santa Tereza


Precisa da alma livre, essa história de comer todo dia atrapalha, afinal alma não come. Dormir também a aflige


NESTE FIM de semana reencontrei na prateleira Tereza de Ávila, a fundadora de Carmelos, escritora, pedagoga, poeta, santa (1515-1582). A obra completa dela, um calhamaço de 1.800 páginas, editora Loyola.
Achei que falaria muito de comida, que se expressaria em imagens, em metáforas como fome de Deus, doce leite que nutre, sabor de mel, assim uma Adélia Prado menos contemporânea.
Errei. Como posso ser burra assim, pois as carmelitas se dedicam à oração, ao desprendimento, jamais iriam ficar fazendo bolinhos de chuva nas horas vagas...
Santa Tereza não era de brincadeira. Difícil de ser lida no meio de nossa superfluidade e consumismo, muita areia para nosso caminhãozinho. Uma fortaleza, uma força descabelada, uma cachoeira facetada, uma viciada em Deus, devassa. Nem quer saber do mundo. Precisa da alma livre, essa história de comer todo dia atrapalha, afinal alma não come.
Dormir também a aflige. E, além de não gostar de comida, tinha que se preocupar com a alimentação das freiras nos conventos.
Que viagem essa santa Tereza!
Uma santidade que dá até medo e espanto. Engraçado que, quando se pensa que já virou brasa de tanto fogo de amor, eis que aparece como administradora, nas regras sensatas que escreveu para o convento pobre e sem renda. "Nenhuma irmã fale se lhe dão muito ou pouco de comer, se está bem ou mal cozido. A Priora e a Provisora cuidem de que, quando o Senhor manda, seja bem preparado, de modo que possam passar com o que Deus se lhes dá, pois não possuem outra coisa."
Pois, não é que se torna a mais prática de todas, quando se menos espera? Que a comida que existe seja benfeita e só. Uma vez ou outra considera o divino como alimento. "De quantas maneiras podemos considerar o nosso Deus! Que variedade de manjares podemos fazer dele. Ele é maná que tem o gosto de acordo com o que queremos que tenha."
E, no meio de seus êxtases, do seu esforço para adequar as palavras ao indizível, percebe-se que mantém uma horta no convento onde as monjas plantam pepinos e colhem couves. Claro, plantam couves também. (Ao se tratar de uma santa dessas poderiam achar que ela plantava pepinos e colhia couves. Não, colhiam o que plantavam.) Ela, a santa, entregue a Deus, não se preocupa com o pão de cada dia, como nós. Sabe que ele virá pela mão do amante.
Quer beijar Deus na boca e nutrir-se do seu peito.
Gostei mais de suas cartas, mais fáceis de entender. Aparece outra mulher, a mulher de ação. É política, inteligente, sagaz, lida com dinheiro muito bem, com reformas de casas, com homens e mulheres poderosos de igual para igual.
São cartas boas, políticas e bem escritas -e nelas chega a agradecer uma manteiga que recebeu e da qual fez bom proveito. (Manteiga é mesmo uma bela invenção.) E ainda louva uns marmelos que ganhou. Bonitos, bons para suas grandes caixas de marmeladas.
Tereza de Ávila não comia carne, obedecia junto à sua ordem um jejum de oito meses, na época em que o jejum era fundamental ao modelo de santidade feminina. (Huuum... Há 500 anos atrás o jejum era fundamental para a santidade da mulher, 500 anos depois é fundamental para a mulher e ponto.) Era na oração, na eucaristia, no corpo e no sangue de Cristo que podiam se fartar.
Santa Tereza não dormia sem antes vomitar. Anorexia mirabilis, o controle do apetite ligado à crença.
Quais serão as ligações do distúrbio alimentar tão antigo com o de hoje?
Será fácil achar várias teses na web.
E é nesta hora que me descabelo de pena dessas maravilhosas epistológrafas que perderam a internet para mandar suas mensagens... Já imaginaram a festa que seria? Cada blog...

ninahorta@uol.com.br


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