São Paulo, segunda-feira, 06 de junho de 2005

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CINEMA

Lançamentos abordam o fetichismo, o papel das mulheres, o situacionismo e a cromática nas obras do americano

Livros pintam facetas de Stanley Kubrick

DO "MONDE"

Seis anos depois de sua morte, em 7 de março de 1999, o cineasta americano está de volta. Uma exposição gigantesca organizada por Hans-Peter Reichmann circulará por diversos países, depois de passar por Berlim. E recentemente também foram lançados na Europa quatro livros sobre Kubrick, todos eles abordando quatro questões essenciais a uma das grandes obras do século 20.
Kubrick era fetichista? O colossal álbum publicado pela editora Taschen oferece um mergulho em arquivos inéditos de um dos cineastas mais dados ao sigilo. É um calhamaço de sete quilos, redigido em inglês (acompanhado de um caderno contendo traduções francesas e de um DVD com uma entrevista com Kubrick, datada de 1966).
"The Stanley Kubrick Archives" (os arquivos de Stanley Kubrick) dedica mais da metade de seu espaço a esplêndidos fotogramas de todos os filmes do diretor, apontando para algumas de suas obsessões (máscaras, manequins, telefones), e oferece material extraído de seus arquivos pessoais.
Repleto de textos referentes à origem dos filmes, de críticas (por Gene Philips, Rodney Hill, Jan Harlan, Michel Ciment) e de entrevistas, o tesouro também oferece desenhos, fotos de cena, anotações, maquetes, Polaroids tiradas na redação de roteiros, imagens de cenas cortadas na edição e documentos sobre projetos que não puderam ser tocados, como um filme a respeito de Napoleão.
Kubrick guardava tudo. No livro, uma festa para os olhos, podemos encontrar numerosas informações sobre a cena final de "Doutor Fantástico", suprimida na montagem (uma batalha de tortas), o espírito exigente, que solicitou 20 machados idênticos para a locação de "O Iluminado", a admiração de Kubrick por Max Ophuls, a intenção original de entregar o papel interpretado por Tom Cruise em "De Olhos Bem Fechados" a Woody Allen.
Kubrick desconfiava das mulheres? No seu erudito estudo intitulado "Stanley Kubrick, L'Humain ni Plus ni Moins" (Stanley Kubrick: o humano, nem mais nem menos), Michel Chion resume todas as tramas, coloca cada filme no contexto, explora estruturas, edição, coabitações de imagens, palavras e música. O autor arrisca análises pessoais entre dois desdobramentos conceituais. É fácil recordar a maneira pela qual o cineasta misantropo representava as mulheres. As esculturas no bar de "Laranja Mecânica", mulheres nuas de coxas separadas, funcionam como metáfora da imagem feminina de acordo com Kubrick: um corpo capaz de acolher ou expulsar personagens. Uma nudez pouco inclinada a se deixar manipular. O homem aceita as formas hollywoodianas, que ele designa como "jogo duplo, alusões, ilusões".
Descobrimos que foi excluída de "A Morte Passou por Perto" (1955), do início da carreira de Kubrick, uma cena de amor que foi filmada e cortada na edição, considerada muito brutal e sexual. Pode-se perceber que homens e mulheres não dizem "I love you" (eu te amo) espontaneamente em seus filmes.
Michel Chion conta que a mulher de Barry Lyndon era um ícone quase mudo, da qual se conhece apenas a inicial do prenome (H); que, em "O Iluminado", a heroína do romance de Stephen King é transformada de mulher sexy em figura confusa e de cérebro de passarinho, e que, mesmo que ocupe papel central na trama, a mulher jamais está onipresente na tela.
Uma possível explicação: a ninfeta de "Lolita", como a personagem de Nicole Kidman em "De Olhos Bem Fechados", são personagens que exigem que os homens acreditem em sua palavra. Suas aventuras amorosas, paixões, encantamentos são apenas objetos de relato, confissões.
A Alice de "De Olhos Bem Fechados" só é vista sob a luz artificial de um banheiro, de um salão de baile, de uma recepção privada, lugares fechados em que ela se posta, sob o olhar de Tom Cruise. Como o oficial por quem Alice diz que deixaria seu marido porque ele "olhou para ela com intensidade", Kubrick repousa seu olhar sobre Alice. Voyeur?
Kubrick era um situacionista? Essa é a tese do ensaio apaixonante de Jordi Vidal, "Traité du Combat Moderne, Films et Fictions de Stanley Kubrick" [tratado do combate moderno, filmes e ficções de Stanley Kubrick]. Ao sublinhar a evidente diferença de atitude entre um Guy Debord, determinado a não vender sua alma ao mercado, e um Kubrick determinado a assinar obras "comerciais" produzidas para os grandes estúdios, o autor tenta mostrar como o cineasta subverte a sociedade do espetáculo.
Jordi vê nos 1001 rostos adotados por Peter Sellers em "Doutor Fantástico" uma estratégia de dissimulação. O cineasta paranóico decidiu filmar "O Iluminado", de Stephen King, a fim de "tirar vantagem dos princípios econômicos que embasam um best-seller", "perverter o sistema de comunicação", transformar o discurso de submissão às fantasias em uma recusa do fatalismo. Usou a nudez do casal Kidman-Cruise em "De Olhos Bem fechados" a fim de atrair espectadores a um filme supostamente ousado, com o objetivo de na verdade lhes exibir uma obra complexa.
Assim, "Spartacus" faz o elogio da revolta libertária, "Glória Feita de Sangue" celebra a recusa à mentira nacionalista, "Barry Lyndon" funciona como demonstração de que é obrigatório saber mentir e se disfarçar para resistir à guerra que a sociedade nos impõe.
"Nascido para Matar" é um "tratado de combate moderno", que traz a denúncia das técnicas de doutrinação já representadas em "Laranja Mecânica", no qual a violência dos delinqüentes não é capaz de rivalizar com o Estado e suas lavagens cerebrais. "2001: Uma Odisséia no Espaço" é uma crítica ao materialismo, à subordinação dos homens às máquinas. "De Olhos Bem Fechados" é a demonstração da submissão dos homens à obscenidade televisiva, a maneira pela qual a sociedade do espetáculo transforma suas fantasias em estereótipos.
Kubrick via tudo em vermelho? Nos primeiros capítulos do magnífico "Matière d'Images", Jacques Aumont explora a relação entre os mestres do cinema e a pintura -Hitchcock, Pasolini, Godard. A seguir, o autor analisa a palheta cromática de Kubrick, diretor cuja obra foi "fertilizada" pela pintura. Menciona homenagens a Constable, Gainsborough e Hogarth (em "Barry Lyndon") e à pintura pop (em "A Laranja Mecânica").
Aumont aponta igualmente para a influência de Longhi, em "De Olhos Bem Fechados", e de Gauguin e Douanier Rousseau em "2001" (os amarelos e malvas do começo, cenas africanas da aurora da humanidade, o plano da pantera postada ao lado de uma zebra morta).
A análise sublinha a onipresença, em filme após filme, do vermelho, cor soberana, mas também destaca a presença de um branco radiante. "2001" é a referência. Filme saturado de um sol capaz de cegar, o raio frontal do qual nem macacos nem astronautas são capazes de se proteger e sob o qual, ao final, na "jaula luxuosa" do mundo invertido, são atacados por monolitos jupiterianos. Em um mundo branco, escreve ele, "onde o sucesso da efêmera civilização humana é reduzir o branco a estados pálidos e toleráveis nas paredes, ou armazenar essa reserva de brilho para projeções sempre virtuais..., basta um clarão de vermelho para criar a cor".


Tradução Paulo Migliacci

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