São Paulo, quarta-feira, 06 de junho de 2007

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MARCELO COELHO

Improviso para cantina e DVD

Aquela lasanha era o paraíso, mas a moça não tinha tempo para entrar em êxtase

JANTAR SOZINHO num restaurante movimentado, num sábado à noite, não é coisa que me aconteça com freqüência. Nessas ocasiões, estou sempre com um livro, ou (para que fique mais "normal") com uma revista: leio, como, pago e vou embora. Dessa vez, num dos cantinões da rua Avanhandava, eu não tinha nada para ler; nada, a não ser o que se passava nas mesas ao meu redor. Não era pouca coisa, afinal.
Havia a mesa das mulheres descasadas: umas cinco ou seis, na virada dos 50 anos, comemorando provavelmente um aniversário. Quites com a vida, experimentavam o que tempos atrás era privilégio masculino: a noitada com os amigos, feita de deboches e excessos inocentes. Na mesa ao lado, havia outra mulher, redonda como uma couve-flor; cada vez que eu a olhava, eu a surpreendia numa nova garfada. Também ali havia uma certa inocência; aquela lasanha era o paraíso, mas a moça não tinha tempo para entrar em êxtase. Tudo lhe vinha aos bocados, mecanicamente, numa função vital, e por isso mesmo mais simpática do que perversa. Eu devia estar bem-humorado.
Não era o caso de uma dupla à minha frente. Ela tinha o rosto cinzento de tédio e de rancor. Vi apenas as costas do marido, imenso como um boi numa camisa azul. O silêncio entre os dois era dos tais que se poderiam cortar como uma faca, e se fosse cortado, aquele marido também o comeria. Ali perto, outro casal, bem mais jovem. O rapaz era feinho de dar dó. A moça ficou sozinha enquanto ele ia ao banheiro. O olhar dela passeou pela sala, como um garçom que não soubesse a que mesa correspondia o prato que tinha nas mãos. Foi quando o rapaz feio voltou à mesa: o rosto da namorada se transportou em festa: ela estava apaixonada.
Que variedade nos apetites! Os famintos, os de ressaca, os fumantes, os que comemoravam o fim da dieta ou se prontificavam a iniciá-la depois do jantar; os inapetentes, os entediados, os objetivos, os indecisos... Coisa maravilhosamente ondulante e diversa que é o ser humano, dizia Montaigne. A frase não é de romancista. Não que os romancistas não se interessem, é claro, pelos seus semelhantes. Mas é provável que o romance dependa de um jogo contraditório entre o que cada um é e o que aparenta ser. Nos dias de hoje, o cinema nos ensinou a ler a verdade na superfície visual dos fatos; e as pessoas já não se ocultam demasiado sob as convenções do meio.
A frase de Montaigne estava-me na ponta da língua, entre uma torrada e uma azeitona, porque eu tinha acabado de ver um belo DVD sobre o compositor americano Elliott Carter, intitulado "A Labyrinth of Time". Carter nasceu em 1908 e está vivo até hoje. No filme de Frank Scheffer, ele fala de sua primeira visita à Alemanha, 12 anos antes da ascensão de Hitler. Um dólar valia dois bilhões de marcos: se ele deixasse restos de comida no prato, o garçom do restaurante enfiava no bolso.
O documentário registra então a volta de Carter a Berlim, para a estréia de uma ópera sua, composta depois dos atentados de 11 de setembro: a ópera se chama "What Next?" ("e agora, o que mais?"). A música de Elliott Carter procura refletir o que há de "ondulante e diverso" no mundo e nos homens. Cada instrumentista tende a tocar com grande independência dos demais, num contraponto minucioso e denso, enquanto os andamentos da música mudam a todo instante, conforme regras intrincadas.
Carter é tão velho que uma peça sua para balé, intitulada "Pocahontas", estreou na mesma noite que o clássico "Billy the Kid", de Copland. A obra de Copland tornou-se um sucesso e faz parte do repertório básico da música americana do século 20. Sobre "Pocahontas", um crítico disse na estréia que a música era tão espessa que mal dava para ver os bailarinos.
No filme, trechos lindos e cacofônicos se alternam, enquanto a câmera mostra pessoas de todas as raças, idades e sexos andando nas ruas de Nova York. Carter é uma simpatia; dentro do apartamento, sua mulher, que parece ainda mais idosa do que ele, prepara um chá. O grande e humaníssimo compositor faz um comentário sobre a companheira. "Ela sempre me ajudou muito.
Durante um tempo, eu quis contratar um secretário. Mas ele ficava lendo minhas partituras e não fazia nada. Ela cuida de todas as coisas práticas, da correspondência, dos arquivos... além da cozinha." E não diz mais nada. Ondulante e diverso, o ser humano. Hora de pedir a conta.

coelhofsp@uol.com.br


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