São Paulo, domingo, 06 de junho de 2010 |
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OPINIÃO Ao mexer com nossa alma, Kazuo Ohno sacaneou a morte
Artista japonês fazia mistura singular de arte oriunda da dor do pós-guerra somada a um tipo de candomblé
GERALD THOMAS ESPECIAL PARA A FOLHA Se você me perguntar qual foi a minha experiência mais mística no teatro em todas essas décadas, afirmo sem hesitar: Kazuo Ohno, que morreu na última semana. Foi aqui em Nova York, no La MaMa, que o recebemos pela primeira vez. Deve ter sido no final dos anos 70 ou dos 80. Alguns anos depois, eu o vi de novo, num beco de Ropongui, em Tóquio, fazendo o ritual da morte, o seu próprio butô (diferente do de Min Tanaka ou do de Sankai Juko). Kazuo incorporava algo: Qual algo? Ah... Quem explica a arte? Quem explica a arte que faz você engolir a sua própria essência e sentir uma dor no peito por dias e dias? Já com 70 e poucos anos, um mulher/homem (em "La Argentina" -versão Dietrich que ele viu certa vez na Alemanha), Ohno provocou tumultos aqui na rua 4, os ingressos esgotaram. O butô de Ohno era a dança que transcendia a morte, como em "Tristão e Isolda" de Wagner. Kazuo era o "Liebestod" [ária final da ópera, onde o amor transcende a morte e vice-versa]. Meio vivo-morto em cena, tínhamos a impressão de que vinha carregado de "entidades". E vinha mesmo. Quando eu o vi mais uma vez, no Sesc Anchieta, fui carregado pra fora do teatro, desmaiado. Sim, desmaiei, porque lá, em cima de sua cabeça e ao redor do seu corpo contorcido em dor e molecagem, eu vi os corpos dos "meus" mortos: Julian Beck, meu pai, Artaud e tantos outros. Cada um via várias entidades nesse japonês que fazia uma mistura singular entre uma arte oriunda da dor do pós-guerra e do teatro Nô somado a uma espécie de candomblé. Ohno era a versão japonesa do caboclo véio. Nossa! Não posso dizer que era de arrepiar. Era mais que isso. E ainda agora, no voo que me trouxe de Londres pra Nova York, eu vinha escrevendo sobre as entidades que compunham a edificação da arte do nosso tempo. Pina Bausch, Merce Cunningham, Bob Wilson, Philip Glass e Kazuo Ohno. Ohno morreu 11 meses depois de Pina. Começo a acreditar que é extraordinário como os deuses do teatro conduzem a mão e contramão do que deixara um legado. Um tremendo legado. Como Beckett em "Ato sem Palavras 1 e 2", Kazuo era o "Ato sem Palavras número 3". Suas mãos ainda cavam fundo na alma algo que nunca acharei. E por quê? Porque o butô celebra a morte. Celebra o único contrato que temos em vida: a morte. E Kazuo Ohno foi uma mistura de Rembrandt e Andy Warhol a sacaneá-la mexendo com a nossa alma e a alma da própria história do teatro para sempre. Adeus, querido. Sayonara. GERALD THOMAS é diretor e autor teatral. Texto Anterior: Foco: Teatro Augusta retoma movimento de fase áurea Próximo Texto: Vanessa Vê TV: Este ainda não é o meu cachecol Índice |
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