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CINEMA/ESTRÉIA
"A HORA DO SHOW"
Com a mesma agressividade dos primeiros filmes, cineasta americano revê temática do racismo
Spike Lee expõe seu discurso radical e irado
CRÍTICO DA FOLHA
Com Spike Lee não existe negociação: "A Hora do Show"
vem como vem, às vezes torto, às
vezes excessivo, quase histérico.
Mas essa é também a medida de
sua integridade. Em nenhum momento se abre mão de idéias em
favor do brilhareco.
E as idéias de Spike, sabe-se, giram em torno da difícil integração
dos negros na sociedade norte-americana. No início, existe Delacroix, um produtor de TV negro,
formado em Harvard (ou outra
faculdade dessa estirpe), bem-sucedido. Um gênio criativo, como
diz o diretor da estação.
Mas esse diretor -na aparência, e só, um não racista- pede a
Delacroix um programa em que
os negros apareçam de outro modo que não na forma de pessoas
de classe média, bem-sucedidas
etc., enfim a idéia difundida nestes tempos de correção política.
Em protesto contra isso, Delacroix bola um show de "blackfaces" (atores que pintavam o rosto
de negro, mesmo quando eram
negros) representando dois idiotas de uma plantação do sul dos
EUA. Ele acredita que será um
fracasso e a comunidade negra
protestará contra aquilo.
Não é bem o que acontece. O
show será ao mesmo tempo o
momento de glória e derrota de
Delacroix, o negro integrado.
Para isso contribui a natureza
da TV, sempre apta a receber o
que existe de mais torpe. Mas essa
natureza não nasce do nada. Ela
tem como cúmplices os espectadores, brancos e negros.
Em certo sentido, estamos dentro de um discurso tradicional sobre a televisão e sua capacidade de
produzir aberrações.
Ao mesmo tempo, Spike nos
conduz ao inferno racial americano (mas limitá-lo aos EUA seria
injusto) com a mesma agressividade de seus primeiros filmes.
Como em "Febre na Selva" ou
"Faça a Coisa Certa", os negros
ora assumem a atitude do branco,
ora mostram-se impermeáveis a
ela. Em ambos os casos, a integração é um beco sem saída. Por outro lado, os brancos só aparentemente se libertam do racismo.
Mais do que em seus primeiros
filmes, Spike Lee leva as contradições da formação americana ao
paroxismo. Não há mais lugar para sutilezas: trata-se de designar,
com clareza, o estado de guerra
que vigora entre brancos e negros.
Se hoje o tratamento dado aos
negros é cheio de dedos, o filme
nos remete à imagética tradicional do homem branco a respeito
do negro, como a perguntar: será
possível que toda essa violência
(de que o "blackface" é um aspecto importante, mas o filme nos revela outros) perdeu-se, anulou-se,
em vista de um novo entendimento das coisas criado a partir
dos anos 60?
A resposta de Spike é clara: não,
uma mentalidade secular não
muda assim tão fácil. O que se
cria, na verdade, são imagens
confortáveis, dentro das quais o
branco pode purgar sua possível
culpa. O mundo continua igual.
Discurso radical -em que um
dos pontos de apoio é a internalização pelo negro dessa imagética
criada pelos brancos-, irado,
impermeável. E portanto longe
do frufru habitual do cinema dito
independente. Spike é um cineasta de idéias, realmente. E "A Hora
do Show", um filme fundamental.
(INÁCIO ARAUJO)
A Hora do Show
Bamboozled
Direção: Spike Lee
Produção: EUA, 2001
Com: Damon Wayans, Savion Glover,
Jada Pinkett-Smith
Quando: a partir de hoje no cine
Lumière
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