São Paulo, sábado, 06 de julho de 2002

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WALTER SALLES

Cartier-Bresson, Miles Davis e o extraordinário roteiro de Ronaldo

"Tudo que eu sei de mais importante sobre questões morais e deveres humanos eu aprendi com o futebol." A frase de Albert Camus faz parte do recém-lançado "Magnum Football", livro que reúne imagens realizadas pelos fotógrafos da agência criada por Cartier-Bresson. Pequenos textos de Sartre, Derrida, Orwell e do próprio Camus acompanham as fotos.
O assunto é um só: futebol. As imagens, tiradas nos quatro cantos do mundo por gente do calibre de Koudelka, de Depardon ou do iraniano Abbas, mostram como a cultura do futebol atravessa as fronteiras de nacionalidade, de raça e de religião.
Meninos jogando bola nas ruínas de Sarajevo ou nos escombros de um terremoto no Irã. Adultos disputando uma partida em um campo de refugiados palestinos. Adolescentes jogando durante a Guerra Civil Espanhola, numa foto esplêndida de Cartier-Bresson. O futebol como uma forma possível de resistência. Ou sobrevivência.
Há várias imagens focalizando o Brasil. Trabalhadores jogando no topo de uma plataforma de petróleo, em pleno mar aberto. Times lutando pela bola na areia de Ipanema. Uma bola planando sobre o Carandiru. Há também uma fotografia inesquecível de um menino visto de costas no Maracanã, segurando a cabeça com as mãos.
Cada uma dessas fotos, cada rosto de menino, me faz lembrar de Ronaldo. Um Ronaldo ainda frágil e inocente. O prenúncio daquele que, anos mais tarde, no início de um novo século, iria rebatizar-se em solo asiático, unindo generosamente o seu destino ao de 170 milhões de pessoas.
Os melhores roteiristas não poderiam ter inventado uma história mais extraordinária. A do garoto que sai do time de subúrbio para o estrelato em poucos anos. Vendido para o futebol europeu, desenha gols inimagináveis. Torna-se um fenômeno. Seu corpo é mercantilizado. Conhece a glória precoce. E a queda de terríveis proporções. O drama da final de 98, o calvário de três anos de lesões e de operações.
Muitos disseram que Ronaldo estava acabado para o futebol. Como um cometa que se tivesse apagado rapidamente. Mas não. Ronaldo acreditou naquilo que parecia impossível. Trabalhou duro. E reescreveu a sua própria história.
Começou a Copa salvando a seleção na estréia contra a Turquia com um gol de craque. E foi melhorando o roteiro jogo a jogo. Serviu os companheiros, jogou coletivamente, recuperou bolas perdidas. Analistas disseram que ele não tinha mais a aceleração de anos atrás. Ronaldo respondeu no campo, demonstrando que suas jogadas estão mais precisas e letais do que nunca. Não custa lembrar aqui o que o genial Miles Davis dizia sobre música: "De que adianta usar todas as notas? Basta usar as melhores".
Muitos falam da beleza do segundo gol contra a Alemanha, da qualidade do tiro de Ronaldo, da bola cumprindo o seu destino curvilíneo. Pessoalmente, acho o primeiro gol ainda mais revelador de seu instinto incomum. Ronaldo roubou a bola de Hamann, entregou-a para Rivaldo e, antes mesmo de este disparar, zuniu na direção de Kahn. Intuiu o que iria acontecer, antecipou a angústia do goleiro na hora do tiro e chegou sozinho para aproveitar o rebote. Sim, Kahn falhou. Mas o gol, o êxtase, só aconteceu porque Ronaldo anteviu o possível erro. Foi o único.
Não é muito diferente da idéia de que os verdadeiros artistas são aqueles que vêem antes dos outros. Talvez seja isso que separa os visionários do resto dos mortais, a capacidade de intuir com clareza aquilo que não está claro para ninguém.
Ronaldo fez a diferença. O seu renascimento ultrapassou, em muito, as fronteiras do esporte, para encontrar o coração do país. Reinventando-se, ele acabou presenteando o Brasil com a possibilidade de uma redenção coletiva. Os momentos de epifania que ele criou nos sugerem que, malgrado todo o caos, ainda valemos a pena. Scott Fitzgerald dizia que não existem segundas chances na vida americana. Ao contrário, Ronaldo provou que, aqui, esse milagre é possível. A notícia veio em boa hora. Porque poucos países têm tanta necessidade de se reinventar quanto o nosso.
Para terminar: futebol não é uma arte individual, Ronaldo não jogou sozinho e sabe disso melhor do que ninguém. O rigor de Felipão, a inventiva e solidariedade dos jogadores, aquela deliciosa feijoada comemorativa presenciada por alemães atônitos, o protocolo de ponta-cabeça, tudo isso também nos representa e nos caracteriza. Numa extraordinária alquimia, esses elementos aparentemente irreconciliáveis, a ciência e a intuição, o rigor e a improvisação, deram-se as mãos sob o céu de Yokohama. Provando que podemos dar certo se quisermos, sem desrespeitar aquilo que nos faz intrinsecamente brasileiros. E Ronaldo veio para conferir uma dimensão épica, simbólica, a essa evidência.


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