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WALTER SALLES
Cartier-Bresson, Miles Davis e o extraordinário roteiro de Ronaldo
"Tudo que eu sei de mais
importante sobre questões morais e deveres humanos eu
aprendi com o futebol." A frase de
Albert Camus faz parte do recém-lançado "Magnum Football", livro que reúne imagens realizadas
pelos fotógrafos da agência criada
por Cartier-Bresson. Pequenos
textos de Sartre, Derrida, Orwell e
do próprio Camus acompanham
as fotos.
O assunto é um só: futebol. As
imagens, tiradas nos quatro cantos do mundo por gente do calibre
de Koudelka, de Depardon ou do
iraniano Abbas, mostram como a
cultura do futebol atravessa as
fronteiras de nacionalidade, de
raça e de religião.
Meninos jogando bola nas ruínas de Sarajevo ou nos escombros
de um terremoto no Irã. Adultos
disputando uma partida em um
campo de refugiados palestinos.
Adolescentes jogando durante a
Guerra Civil Espanhola, numa foto esplêndida de Cartier-Bresson.
O futebol como uma forma possível de resistência. Ou sobrevivência.
Há várias imagens focalizando
o Brasil. Trabalhadores jogando
no topo de uma plataforma de petróleo, em pleno mar aberto. Times lutando pela bola na areia de
Ipanema. Uma bola planando sobre o Carandiru. Há também
uma fotografia inesquecível de
um menino visto de costas no
Maracanã, segurando a cabeça
com as mãos.
Cada uma dessas fotos, cada
rosto de menino, me faz lembrar
de Ronaldo. Um Ronaldo ainda
frágil e inocente. O prenúncio daquele que, anos mais tarde, no
início de um novo século, iria rebatizar-se em solo asiático, unindo generosamente o seu destino
ao de 170 milhões de pessoas.
Os melhores roteiristas não poderiam ter inventado uma história mais extraordinária. A do garoto que sai do time de subúrbio
para o estrelato em poucos anos.
Vendido para o futebol europeu,
desenha gols inimagináveis. Torna-se um fenômeno. Seu corpo é
mercantilizado. Conhece a glória
precoce. E a queda de terríveis
proporções. O drama da final de
98, o calvário de três anos de lesões e de operações.
Muitos disseram que Ronaldo
estava acabado para o futebol.
Como um cometa que se tivesse
apagado rapidamente. Mas não.
Ronaldo acreditou naquilo que
parecia impossível. Trabalhou
duro. E reescreveu a sua própria
história.
Começou a Copa salvando a seleção na estréia contra a Turquia
com um gol de craque. E foi melhorando o roteiro jogo a jogo.
Serviu os companheiros, jogou coletivamente, recuperou bolas perdidas. Analistas disseram que ele
não tinha mais a aceleração de
anos atrás. Ronaldo respondeu
no campo, demonstrando que
suas jogadas estão mais precisas e
letais do que nunca. Não custa
lembrar aqui o que o genial Miles
Davis dizia sobre música: "De que
adianta usar todas as notas? Basta usar as melhores".
Muitos falam da beleza do segundo gol contra a Alemanha, da
qualidade do tiro de Ronaldo, da
bola cumprindo o seu destino curvilíneo. Pessoalmente, acho o primeiro gol ainda mais revelador
de seu instinto incomum. Ronaldo roubou a bola de Hamann, entregou-a para Rivaldo e, antes
mesmo de este disparar, zuniu na
direção de Kahn. Intuiu o que iria
acontecer, antecipou a angústia
do goleiro na hora do tiro e chegou sozinho para aproveitar o rebote. Sim, Kahn falhou. Mas o gol,
o êxtase, só aconteceu porque Ronaldo anteviu o possível erro. Foi
o único.
Não é muito diferente da idéia
de que os verdadeiros artistas são
aqueles que vêem antes dos outros. Talvez seja isso que separa os
visionários do resto dos mortais, a
capacidade de intuir com clareza
aquilo que não está claro para
ninguém.
Ronaldo fez a diferença. O seu
renascimento ultrapassou, em
muito, as fronteiras do esporte,
para encontrar o coração do país.
Reinventando-se, ele acabou presenteando o Brasil com a possibilidade de uma redenção coletiva.
Os momentos de epifania que ele
criou nos sugerem que, malgrado
todo o caos, ainda valemos a pena. Scott Fitzgerald dizia que não
existem segundas chances na vida
americana. Ao contrário, Ronaldo provou que, aqui, esse milagre
é possível. A notícia veio em boa
hora. Porque poucos países têm
tanta necessidade de se reinventar quanto o nosso.
Para terminar: futebol não é
uma arte individual, Ronaldo
não jogou sozinho e sabe disso
melhor do que ninguém. O rigor
de Felipão, a inventiva e solidariedade dos jogadores, aquela deliciosa feijoada comemorativa
presenciada por alemães atônitos, o protocolo de ponta-cabeça,
tudo isso também nos representa
e nos caracteriza. Numa extraordinária alquimia, esses elementos
aparentemente irreconciliáveis, a
ciência e a intuição, o rigor e a
improvisação, deram-se as mãos
sob o céu de Yokohama. Provando que podemos dar certo se quisermos, sem desrespeitar aquilo
que nos faz intrinsecamente brasileiros. E Ronaldo veio para conferir uma dimensão épica, simbólica, a essa evidência.
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