São Paulo, terça-feira, 06 de julho de 2010

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Torre de memórias

Holandeses fazem versão virtual para obra abandonada de Niemeyer na Barra da Tijuca

Fotos Luciana Whitaker/Folhapress
Torre H, obra de Niemeyer, na Barra, Rio

SILAS MARTÍ
ENVIADO ESPECIAL AO RIO

Duas vezes por dia, um zelador sobe a pé os 37 andares da torre H, na Barra da Tijuca. Às vezes, está armado, para expulsar invasores.
Isso porque nunca ninguém morou lá. Com exceção de uma ocupação de sem-teto em 2004, faz 41 anos que está vazio o edifício projetado por Oscar Niemeyer, um dos primeiros erguidos num megacomplexo imobiliário.
Das 70 torres do mesmo tamanho planejadas para povoar a Barra, quatro saíram do papel, três ficaram de pé e só duas estão habitadas.
Anúncios publicitários da época diziam "o paraíso existe: este aqui". Hoje, seis vigias disputam até as pilhas das lanternas para policiar um gigante esquecido: 454 apartamentos, em 110 metros de altura, sem luz elétrica, encanamento ou elevador.
Na origem de tudo, Lucio Costa desenhou o plano piloto da Barra e Niemeyer fez as torres. A construção começou em 1969, deveria terminar três anos depois, mas se arrastou até 1984, quando parou sem explicação.
Em 2005, foi decretada a falência da empreiteira, deixando no lugar uma torre abarrotada e seu clone vazio.
Foi a primeira visão que os artistas holandeses Wouter Osterholt e Elke Uitentuis tiveram dessa parte do Rio. Passaram três meses em residência no projeto Capacete, na Glória, mas não conseguiam tirar da cabeça esse "esqueleto de concreto".
Só depois, no ateliê, exumaram todo o cadáver modernista. Descobriram os nomes por trás do projeto e encontraram, em arquivos e coleções particulares, as plantas originais do que empreiteiras vendiam à época como um "novo modo de vida".
Mas ninguém esperava que a mudança seria para pior. Osterholt e Uitentuis então esquadrinharam todo o terreno. Fizeram mais de 20 mil fotografias dos apartamentos, subiram e desceram as escadas e vão recriar todo o prédio em versão virtual.
Parte desse estudo já pode ser visto agora numa pequena mostra no teatro de Arena, em São Paulo, e no blog da dupla wouterelke.nl/rio.
"Queremos tomar essa torre como monumento, um símbolo contra um modo de vida", diz Uitentuis, num carro parado no congestionamento a caminho da Barra.
Da zona sul até lá, é normal perder uma hora e meia no trânsito. À época da construção, um anúncio alardeava o tempo de sete minutos para fazer todo o percurso.
Vencido o engarrafamento nos túneis até lá, a realidade é outra. Numa casinha na borda do terreno, única parte ocupada da planta, funciona a Associação dos Adquirentes da Torre H, que tenta até hoje concluir a construção.

SONHO E PESADELO
Nas paredes, páginas antigas de jornais denunciam a tragédia. Resumem toda a história como "o sonho que virou pesadelo", "uma novela de concreto e ruínas".
Mais encorpados, lamentos e algumas desculpas estão nas entrevistas que os artistas fizeram com proprietários originais dos apartamentos, urbanistas, engenheiros e advogados da empreiteira.
"Não é tão importante contar a história exata", diz Osterholt. "Os fatos estão nos jornais, nos livros, mas estamos mais interessados nas versões diferentes disso."
Na réplica virtual da torre H, cada apartamento terá imagens e uma entrevista. Serão 454 depoimentos para destrinchar as camadas humanas da história, para além dessa casca de concreto.
"É como escrever um livro, revelar todas as camadas dos personagens", compara Osterholt. "Existe um silêncio em torno dessa torre."
Mudez que começa pelo nome. Batizada Abraham Lincoln no início, junto das vizinhas Charles de Gaulle e Ernest Hemingway, a torre H adotou depois a designação, nada ilustre, da planta.
Construtores da época, num "pacto de gigantes", pareciam embalados pelo milagre econômico da ditadura.
Perto da morte, Lucio Costa escreveu que "veio o mau destino e fez da Barra o que quis". Nas obras de Niemeyer, não há menção à torre H.


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