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Até a última ponta
Will Self parte da guimba de um cigarro e dos desvios de leis antifumo para criar em seu novo livro uma alegoria colonialista à "Coração das Trevas"
FABIO VICTOR
DE SÃO PAULO
Numa viagem à Austrália,
o escritor inglês Will Self ficou surpreso com a rigidez
das leis antifumo do país,
"tão meticulosas que era ilegal fumar a 30 metros da entrada de prédios públicos, e
linhas amarelas eram pintadas nas ruas e calçadas para
garantir seu cumprimento".
Foi, conta o autor, o mote
para escrever o romance "A
Guimba", agora lançado no
Brasil pela Alfaguara.
"Pareceu-me bem estranho que um país colonial há
até pouco tempo tenha, em
apenas oitenta anos, cometido o genocídio do seus indígenas até impedi-los de fumar na rua", afirmou, em entrevista por e-mail à Folha.
O livro, pois, é ambientado
numa nação que caricatura a
Austrália, mas agrega a ela
traços do Iraque pós-guerra.
Self pretendeu criar uma
alegoria colonialista inspirada no clássico "Coração das
Trevas", de Joseph Conrad.
"O romance de Conrad é
ambivalente em relação ao
colonialismo -sugere que os
colonizadores foram tão brutalizados pelo contato quanto os colonizados. Acho que o
neocolonialismo (que foi
com o que os EUA e os britânicos se envolveram no Iraque) depende do mesmo velho processo de caricaturar
os invadidos/colonizados.
Na verdade, toda a chamada "Guerra ao Terror" tem dependido dessa caricaturização, a qual, mais ainda que o
racismo deliberado, desumaniza quem é vítima dela".
GROTESCO
Na história, em que o protagonista disposto a largar o
vício se enreda num pesadelo kafkiano graças à guimba
do seu último cigarro, todos
são caricaturas grotescas:
americanos, britânicos, australianos, aborígenes.
"Acho que a descrição dos
americanos levou a uma recepção negativa nos EUA, e
que o retrato de um país à la
Austrália motivou a recepção
negativa do livro por lá.
Estranho, não é, como as
pessoas não gostam de ser
satirizadas por aqueles que
veem como intrusos? Imagino que os brasileiros também
não gostem muito", diz ele.
Embora não esteja posto
deliberadamente no romance, fica claro que a patética
família do protagonista, Tom
Brodzinski, é americana.
Mas o igualmente grotesco
parceiro de Brodzinski na jornada que é obrigado a fazer
ao deserto, Brian Prentice, é
britânico, assegura o escritor, para quem há cada vez
menos diferença entre as
duas culturas.
"Acho que os americanos
-e me refiro ao establishment americano- tendem a
ser mais puritanos (e pedantes quanto ao seu puritanismo) do que os ingleses, mas,
realmente, essas diferenças
são secundárias e podem ser
incluídas na rubrica "o narcisismo das pequenas diferenças". Na verdade, me parece
que haverá mais e mais convergência entre as duas sociedades enquanto o Reino
Unido mantiver sua covarde
política externa atlanticista."
FUMOU TUDO
Depois de fumar "tudo" na
juventude ("baseado, crack,
heroína"), o autor londrino
de 48 anos está há dez anos
restrito ao tabaco, três cigarros feitos à mão por dia.
Até chegar lá, o amor ao
hábito por vezes criou um fumante "barroco", que experimentou trecos como "cachimbos de meerschaum [o
mineral sepiolita] gigantes".
O perfil enfumaçado não
lhe embotou os sentidos:
sente falta de fumar num café ou restaurante sem ser patrulhado e se queixa que não
haja estabelecimentos licenciados para fumantes como
há para consumidores de álcool, mas defende as leis antifumo, que vigoram também
em seu país. "Se há libertários achando que a única
bandeira a levantar nesta
causa tem as cores do cigarro, eles são realmente libertários muito fajutos", espeta.
Da visita que fez ao Brasil
em 2007 para participar da
Flip, o escritor guarda uma
recordação fumarenta. "Encontrei um fumo preto particularmente bom, barato,
vendido em pequenas sacolas plásticas. Muito forte. Impossível achá-lo aqui, claro,
mas se alguém se dispuser a
me enviar ficarei muito grato", solicitou.
A reportagem então pediu
mais detalhes e pegou o endereço do escritor para atender ao pedido.
MULHER COM CABAÇA
"Se bem me lembro, vinha
numa sacola e talvez tivesse
a imagem de uma mulher
com uma cabaça na cabeça.
A coisa mais importante é
que era FORTE", escreveu de
volta o autor.
Mas, pobre Self, como a reportagem mais tarde descobriu que não é permitido enviar cigarros ou fumo pelo
correio, o escritor terá de
aguardar que algum portador lhe leve a encomenda numa viagem a Londres.
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