São Paulo, terça-feira, 06 de julho de 2010

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Até a última ponta

Will Self parte da guimba de um cigarro e dos desvios de leis antifumo para criar em seu novo livro uma alegoria colonialista à "Coração das Trevas"

FABIO VICTOR
DE SÃO PAULO

Numa viagem à Austrália, o escritor inglês Will Self ficou surpreso com a rigidez das leis antifumo do país, "tão meticulosas que era ilegal fumar a 30 metros da entrada de prédios públicos, e linhas amarelas eram pintadas nas ruas e calçadas para garantir seu cumprimento".
Foi, conta o autor, o mote para escrever o romance "A Guimba", agora lançado no Brasil pela Alfaguara.
"Pareceu-me bem estranho que um país colonial há até pouco tempo tenha, em apenas oitenta anos, cometido o genocídio do seus indígenas até impedi-los de fumar na rua", afirmou, em entrevista por e-mail à Folha.
O livro, pois, é ambientado numa nação que caricatura a Austrália, mas agrega a ela traços do Iraque pós-guerra.
Self pretendeu criar uma alegoria colonialista inspirada no clássico "Coração das Trevas", de Joseph Conrad.
"O romance de Conrad é ambivalente em relação ao colonialismo -sugere que os colonizadores foram tão brutalizados pelo contato quanto os colonizados. Acho que o neocolonialismo (que foi com o que os EUA e os britânicos se envolveram no Iraque) depende do mesmo velho processo de caricaturar os invadidos/colonizados.
Na verdade, toda a chamada "Guerra ao Terror" tem dependido dessa caricaturização, a qual, mais ainda que o racismo deliberado, desumaniza quem é vítima dela".

GROTESCO
Na história, em que o protagonista disposto a largar o vício se enreda num pesadelo kafkiano graças à guimba do seu último cigarro, todos são caricaturas grotescas: americanos, britânicos, australianos, aborígenes.
"Acho que a descrição dos americanos levou a uma recepção negativa nos EUA, e que o retrato de um país à la Austrália motivou a recepção negativa do livro por lá.
Estranho, não é, como as pessoas não gostam de ser satirizadas por aqueles que veem como intrusos? Imagino que os brasileiros também não gostem muito", diz ele.
Embora não esteja posto deliberadamente no romance, fica claro que a patética família do protagonista, Tom Brodzinski, é americana.
Mas o igualmente grotesco parceiro de Brodzinski na jornada que é obrigado a fazer ao deserto, Brian Prentice, é britânico, assegura o escritor, para quem há cada vez menos diferença entre as duas culturas.
"Acho que os americanos -e me refiro ao establishment americano- tendem a ser mais puritanos (e pedantes quanto ao seu puritanismo) do que os ingleses, mas, realmente, essas diferenças são secundárias e podem ser incluídas na rubrica "o narcisismo das pequenas diferenças". Na verdade, me parece que haverá mais e mais convergência entre as duas sociedades enquanto o Reino Unido mantiver sua covarde política externa atlanticista."

FUMOU TUDO
Depois de fumar "tudo" na juventude ("baseado, crack, heroína"), o autor londrino de 48 anos está há dez anos restrito ao tabaco, três cigarros feitos à mão por dia.
Até chegar lá, o amor ao hábito por vezes criou um fumante "barroco", que experimentou trecos como "cachimbos de meerschaum [o mineral sepiolita] gigantes".
O perfil enfumaçado não lhe embotou os sentidos: sente falta de fumar num café ou restaurante sem ser patrulhado e se queixa que não haja estabelecimentos licenciados para fumantes como há para consumidores de álcool, mas defende as leis antifumo, que vigoram também em seu país. "Se há libertários achando que a única bandeira a levantar nesta causa tem as cores do cigarro, eles são realmente libertários muito fajutos", espeta.
Da visita que fez ao Brasil em 2007 para participar da Flip, o escritor guarda uma recordação fumarenta. "Encontrei um fumo preto particularmente bom, barato, vendido em pequenas sacolas plásticas. Muito forte. Impossível achá-lo aqui, claro, mas se alguém se dispuser a me enviar ficarei muito grato", solicitou.
A reportagem então pediu mais detalhes e pegou o endereço do escritor para atender ao pedido.

MULHER COM CABAÇA
"Se bem me lembro, vinha numa sacola e talvez tivesse a imagem de uma mulher com uma cabaça na cabeça. A coisa mais importante é que era FORTE", escreveu de volta o autor.
Mas, pobre Self, como a reportagem mais tarde descobriu que não é permitido enviar cigarros ou fumo pelo correio, o escritor terá de aguardar que algum portador lhe leve a encomenda numa viagem a Londres.


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