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OPINIÃO LITERATURA
Piva deixa obra marcada pela provocação
Poesia belicosa do escritor paulistano, morto no último sábado, se declara pela "violência" contra a "lógica"
ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Em momentos assim,
quando fica claro que tudo é
um haver da morte, me ocorre dizer publicamente o
quanto me sinto grato a Roberto Piva por me ter dado a
chance de editar a sua obra,
ainda longe do reconhecimento devido.
Até agora, incluindo o que escrevi sobre ela, foram apenas arranhões na grandeza
da sua poesia.
Os seus livros, vistos em
conjunto, parecem resultar
de três surtos produtivos.
O primeiro, alimentado
pela intertextualidade com
os beats e a poesia modernista, inclui "Paranóia" (1963) e
"Piazzas" (1964).
O segundo, de traços psicodélicos e experimentais,
reúne o melhor da obra de Piva: "Abra os Olhos e Diga
Ah!" (1975), "Coxas" (1979),
"20 Poemas com Brócoli"
(1981) e "Quizumba" (1983).
O terceiro se refere ao período recente, iniciático e
mais convencional, constituído por "Ciclones" (1997) e
"Estranhos Sinais de Saturno" (2008).
A forma livre do seu verso
pode ser associada ao ditirambo dionisíaco: sem regularidades métricas ou rima,
tudo se submetendo ao jorro
de ritmos exaltatórios e declamativos, que celebram a
alegria de viver, os transportes da mesa, o tesão do corpo.
Ainda comum a toda a
obra de Piva é o esquema de
oposições. Alguns críticos viram nisso sinal de limitação.
Não é o caso.
A produção insólita de
contrastes e as identificações
surpreendentes que decorrem deles desmontam qualquer maniqueísmo e abrem o
verso para uma impressionante liberdade semântica.
Geram exatamente o que há
de mais histriônico, teatral,
contundente e arrebatador
nos poemas.
PEÇAS DE XADREZ
Assim, "crepúsculo" e
"aurora", "maconha" e "licor", "box" e "tênis" tornam-se peças de um xadrez gramatical de escolhas urgentes. D.H. Lawrence ou Valéry? Artaud ou Hegel? De
Chirico ou Mondrian? Sade
ou Eliot?
Piva elege os primeiros termos das oposições, onde
também se alinham "Barrabás" (contra "Cristo"), "corpo" (versus "mente"), "gambás" ("cegonhas" jamais).
A sua poesia belicosa se
declara pela "violência" contra a "lógica", pelas "baterias" contra os "violões", em
favor do "ânus" contra a "vagina". E justamente porque
não há ecumenismo, nem
oposições óbvias, os poemas
ganham caráter explosivo de
manifesto, provocação e
nonsense.
Nesse jogo extremo, o leitor está nu: não há lugares
comuns que habilitem estratégias de legibilidade. O poema solicita uma experiência
real de incompreensão, desamparo, de descolamento
dos clichês, os quais, fingindo tudo comunicar, apenas
celebram a mediocridade e
naturalizam os interditos.
O procedimento empreendido por Piva, muitas vezes
simplificado como surrealista, é básico em toda experiência poética radical: despojar-se dos sentidos, para
acumular energia suficiente
para a percepção de outros sentidos, que rompam brutalmente a inércia cognitiva.
ALCIR PÉCORA é professor de teoria
literária na Unicamp
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