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MEMÓRIAS
Em "Quando Eu Era o Tal", Sam Kashner relembra os anos na Escola Jack Kerouac de Poetas Desencarnados
Ex-aluno narra o outono dos beatniks
EDUARDO SIMÕES
DA REPORTAGEM LOCAL
O poeta Peter Orlovsky já apelava para óculos bifocais ao ler a
correspondência de seu amante
de três décadas, o também poeta
Allen Ginsberg, quando o escritor
americano Sam Kashner desembarcou na Jack Kerouac School of
Disembodied Poetics [algo como
Escola Jack Kerouac de Poetas
Desencarnados], numa tentativa
de fuga da educação universitária
careta de então, através de uma
aproximação com o universo dos
beatniks. Encontrou, como se vê
na passagem acima, de suas memórias em "Quando Eu Era o Tal"
(editora Planeta), um melancólico retrato do que aqueles escritores foram 20 anos antes.
"Queria encontrar as pessoas
dos livros de Kerouac, da poesia
de Ginsberg, da imaginação de
William Burroughs. Queria conhecê-los também. Eu estava animado, mas havia um elemento de
terror nisso tudo. Eles ainda eram
capazes de causar algum estrago,
alguns excessos. Mas eram os
beatniks loucos em sua aposentadoria", conta Kashner, em entrevista à Folha.
Nova-iorquino, hoje habitual
colaborador das revistas americanas "GQ" e "Vanity Fair", Sam
Kashner chegou à escola em Boulder, no Colorado, em 1975, quando tinha 19 anos. Era o primeiro e
único aluno da tal escola de literatura. Ao longo dos dois anos em
que ficou lá, ele diz ter feito tarefas
tão incomuns como finalizar poemas de Ginsberg -aqueles com
que o poeta estava insatisfeito, como um que descrevia o sexo oral
feito em Neal Cassady- ou carregar um aspirador de pó até a mansão na montanha, de Trungpa
Rinpoche, professor de meditação tibetana de Ginsberg, a quem
Kashner considerava o guru ideal
para os beats: Rinpoche gostava
de beber e de fumar.
"Eu nunca ficava entediado
porque não tinha idéia de que tipo
de descobertas estavam à minha
espera", diz Kashner. "Até tentei,
depois, ir para uma escola "normal". Mas tinha a sensação de que
seria como tomar um banho de
banheira depois de ter nadado no
oceano."
As memórias colecionadas em
"Quando Eu Era o Tal" -"When
I Was Cool" no título original-
são peculiares: numa das aulas
com Burroughs, em que dividia o
espaço com hippies sem-terra, ali
apenas em busca de abrigo do
frio, Kashner teve que ouvir fitas
virgens, de onde o velho beat, e
somente ele, garantia conseguir
escutar conversas póstumas entre
o ditador nazista Hitler e Anne
Frank, judia alemã, autora de um
diário sobre suas experiências
com o Holocausto.
Outra recordação, esta carinhosa, é ligada a seu pai, Seymour, a
quem chama de "o herói secreto"
de seu livro: certa vez, Kashner, o
pai, tocou harmônica acompanhado de Ginsberg e jovens roqueiros punks, em Manhattan.
"No entanto, acho que a lembrança que ainda me toca mais,
após todos estes anos, é a de Gregory Corso [o quarto poeta pai da
geração beat] e uma de suas namoradas me raptando para tentar
me iniciar nas injeções com drogas e busca por visões. E algum sexo grupal, possivelmente. Parecia
um livro do Raymond Chandler",
diz Kashner.
Dos beatniks com quem conviveu, Kashner diz ter se identificado mais com Ginsberg, que, como
ele, era intenso e judeu, além de
gostar de poesia e idéias políticas
radicais. E que, no fundo, era menos louco do que parecia. Anne
Waldman, a única mulher do grupo da escola, era a "professora"
com quem Kashner tinha relação
mais distante. O motivo: ela não
queria que ninguém chegasse
muito perto dos pais do beat, era
um tanto possessiva com eles.
Kashner ressalta que seu livro
também é um retrato de uma era:
os Estados Unidos do sexo, das
drogas, do rock e da poesia. Esta
última, lamenta ele, muito em falta no país de hoje. Quanto aos
beats, o autor considera que
"Quando Eu Era o Tal" desconstrói mitos.
"Como diz a minha mulher, a
poeta Nancy Schoenberger, o livro mostra aqueles personagens
em toda sua fragilidade, vaidade,
lado humano, que vão além das
lendas. Mas eu espero ter feito
uma desconstrução com afeto,
que é o que eu sentia, e ainda sinto, por eles."
Outra vez
Passados exatos 30 anos de sua
chegada à incomum escola, se tivesse que fazer tudo de novo,
pondera Kashner, tentaria dizer
mais "não". Ou não:
"Por outro lado, teria sido bárbaro, ainda que assustador, ter ficado alto com algum dos beatniks
originais. Você pode imaginar
usar drogas alucinógenas, ao menos uma vez, com William Burroughs? Ou fumar um baseado
com Allen Ginsberg? Ou ainda
roubar uma loja com Gregory
Corso? Mas eu ouvia a voz dos
meus pais na minha cabeça, falando de pessoas como Diane Linkletter [filha do apresentador de
TV Art Linkletter], que tomou
LSD e pulou de uma janela. Daí eu
recuava."
Quando Eu Era o Tal
Autor: Sam Kashner
Tradução: Santiago Nazarian
Editora: Planeta
Quanto: R$ 39,90 (360 págs.)
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