São Paulo, sábado, 06 de agosto de 2005

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MEMÓRIAS

Em "Quando Eu Era o Tal", Sam Kashner relembra os anos na Escola Jack Kerouac de Poetas Desencarnados

Ex-aluno narra o outono dos beatniks

EDUARDO SIMÕES
DA REPORTAGEM LOCAL

O poeta Peter Orlovsky já apelava para óculos bifocais ao ler a correspondência de seu amante de três décadas, o também poeta Allen Ginsberg, quando o escritor americano Sam Kashner desembarcou na Jack Kerouac School of Disembodied Poetics [algo como Escola Jack Kerouac de Poetas Desencarnados], numa tentativa de fuga da educação universitária careta de então, através de uma aproximação com o universo dos beatniks. Encontrou, como se vê na passagem acima, de suas memórias em "Quando Eu Era o Tal" (editora Planeta), um melancólico retrato do que aqueles escritores foram 20 anos antes.
"Queria encontrar as pessoas dos livros de Kerouac, da poesia de Ginsberg, da imaginação de William Burroughs. Queria conhecê-los também. Eu estava animado, mas havia um elemento de terror nisso tudo. Eles ainda eram capazes de causar algum estrago, alguns excessos. Mas eram os beatniks loucos em sua aposentadoria", conta Kashner, em entrevista à Folha.
Nova-iorquino, hoje habitual colaborador das revistas americanas "GQ" e "Vanity Fair", Sam Kashner chegou à escola em Boulder, no Colorado, em 1975, quando tinha 19 anos. Era o primeiro e único aluno da tal escola de literatura. Ao longo dos dois anos em que ficou lá, ele diz ter feito tarefas tão incomuns como finalizar poemas de Ginsberg -aqueles com que o poeta estava insatisfeito, como um que descrevia o sexo oral feito em Neal Cassady- ou carregar um aspirador de pó até a mansão na montanha, de Trungpa Rinpoche, professor de meditação tibetana de Ginsberg, a quem Kashner considerava o guru ideal para os beats: Rinpoche gostava de beber e de fumar.
"Eu nunca ficava entediado porque não tinha idéia de que tipo de descobertas estavam à minha espera", diz Kashner. "Até tentei, depois, ir para uma escola "normal". Mas tinha a sensação de que seria como tomar um banho de banheira depois de ter nadado no oceano."
As memórias colecionadas em "Quando Eu Era o Tal" -"When I Was Cool" no título original- são peculiares: numa das aulas com Burroughs, em que dividia o espaço com hippies sem-terra, ali apenas em busca de abrigo do frio, Kashner teve que ouvir fitas virgens, de onde o velho beat, e somente ele, garantia conseguir escutar conversas póstumas entre o ditador nazista Hitler e Anne Frank, judia alemã, autora de um diário sobre suas experiências com o Holocausto.
Outra recordação, esta carinhosa, é ligada a seu pai, Seymour, a quem chama de "o herói secreto" de seu livro: certa vez, Kashner, o pai, tocou harmônica acompanhado de Ginsberg e jovens roqueiros punks, em Manhattan.
"No entanto, acho que a lembrança que ainda me toca mais, após todos estes anos, é a de Gregory Corso [o quarto poeta pai da geração beat] e uma de suas namoradas me raptando para tentar me iniciar nas injeções com drogas e busca por visões. E algum sexo grupal, possivelmente. Parecia um livro do Raymond Chandler", diz Kashner.
Dos beatniks com quem conviveu, Kashner diz ter se identificado mais com Ginsberg, que, como ele, era intenso e judeu, além de gostar de poesia e idéias políticas radicais. E que, no fundo, era menos louco do que parecia. Anne Waldman, a única mulher do grupo da escola, era a "professora" com quem Kashner tinha relação mais distante. O motivo: ela não queria que ninguém chegasse muito perto dos pais do beat, era um tanto possessiva com eles.
Kashner ressalta que seu livro também é um retrato de uma era: os Estados Unidos do sexo, das drogas, do rock e da poesia. Esta última, lamenta ele, muito em falta no país de hoje. Quanto aos beats, o autor considera que "Quando Eu Era o Tal" desconstrói mitos.
"Como diz a minha mulher, a poeta Nancy Schoenberger, o livro mostra aqueles personagens em toda sua fragilidade, vaidade, lado humano, que vão além das lendas. Mas eu espero ter feito uma desconstrução com afeto, que é o que eu sentia, e ainda sinto, por eles."

Outra vez
Passados exatos 30 anos de sua chegada à incomum escola, se tivesse que fazer tudo de novo, pondera Kashner, tentaria dizer mais "não". Ou não:
"Por outro lado, teria sido bárbaro, ainda que assustador, ter ficado alto com algum dos beatniks originais. Você pode imaginar usar drogas alucinógenas, ao menos uma vez, com William Burroughs? Ou fumar um baseado com Allen Ginsberg? Ou ainda roubar uma loja com Gregory Corso? Mas eu ouvia a voz dos meus pais na minha cabeça, falando de pessoas como Diane Linkletter [filha do apresentador de TV Art Linkletter], que tomou LSD e pulou de uma janela. Daí eu recuava."


Quando Eu Era o Tal
Autor:
Sam Kashner
Tradução: Santiago Nazarian
Editora: Planeta
Quanto: R$ 39,90 (360 págs.)


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