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FERREIRA GULLAR
Crime e castigo
Quando a Justiça
falha, o convívio social fica ameaçado pela arbitrariedade
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O RAPAZ foi preso no momento
em que assaltava uma residência do condomínio onde
trabalhava. Interrogado pelo delegado, confessou ter também matado, a golpes de pé-de-cabra, meses
atrás, um casal americano que morava no mesmo condomínio. Contou como pulou o muro e entrou na
residência do casal, sem dificuldade,
porque a fechadura da porta principal não trancava. Assim, chegou ao
quarto e, conforme confessou, deparou com o casal dormindo, estando o
marido à esquerda do leito e a mulher à direita; disse quantos golpes
deferiu na cabeça de cada um deles e
as coisas que roubara. Tudo conferia
com o que a polícia apurara, sem
deixar dúvidas.
No dia seguinte, foi designado um
advogado para defendê-lo. Após o
encontro dos dois, o rapaz desmentiu tudo o que confessara: não matara ninguém, nunca entrara na casa
dos americanos e só admitira tê-los
assassinado porque havia sido
ameaçado pelo delegado.
Trocando em miúdos: ao ouvir do
rapaz a confissão que fizera à polícia,
o advogado, imediatamente, o
orientou no sentido de negar tudo.
Embora sabendo da culpa do rapaz,
embora tendo ouvido a confissão
detalhada do duplo homicídio, o advogado dispôs-se a impedir que ele
pagasse pelo crime que cometera.
Pergunto: a função do advogado de
defesa é impedir que se faça justiça?
Não sou advogado, não sou jurista,
logo falta-me competência para descer aos arcanos das leis. Apesar disso, como cidadão, tenho necessidade de entender de que modo a justiça é feita, mesmo porque ela é o fundamento da sociedade. Quando a
Justiça falha, o convívio social fica
ameaçado pela arbitrariedade. Logo,
não se pode aceitar que o advogado
de defesa se atribua a função de evitar que um assassino confesso seja
punido por seu crime.
Não é admissível que se tenha
criado com esse propósito a figura
do advogado de defesa. Ele existe para impedir que o inocente seja condenado, e não para garantir a impunidade do criminoso. Seria um absurdo que a própria Justiça criasse
um instrumento para se anular. Talvez por deformação profissional,
busca de notoriedade ou entendimento equivocado de seu papel, o
advogado de defesa, com honrosas
exceções, atua na prática como inimigo da Justiça.
Agora mesmo, no caso de Suzane
Richthofen, o país assistiu ao advogado dela lançar mão de meios inaceitáveis para livrá-la da condenação, mesmo sabendo de sua participação direta no massacre de seus
pais. Causa espanto que um profissional, formado para trabalhar na
aplicação das leis, demonstre tão
pouco apreço aos valores humanos e
sociais.
Não tenho prazer nenhum em punir alguém e sofro quando penso nas
pessoas que, condenadas, passam
anos de sua vida em penitenciárias,
e, pior, nas penitenciárias do Brasil,
superlotadas, em que o preso está
sujeito a todo tipo de violência.
A punição não pode ser entendida
como vingança contra o transgressor e, sim, como a necessidade de fazer valer as normas do convívio social, já que, sem elas, voltaríamos à
barbárie. A reforma do sistema penitenciário é uma necessidade que
todos reconhecem, mas, seja por
que razão for, tem sido sempre adiada ou empreendida sem a urgência
que se impõe.
O aumento da criminalidade tem
levado muitos setores da opinião
pública a reclamar da frouxidão de
nossa legislação penal e do procedimento dos juízes.
Recentemente, causou revolta
uma decisão do Supremo Tribunal
Federal que estendeu o benefício de
progressão da pena a condenados
por crimes hediondos. Como conseqüência dessa decisão, criminosos
de indiscutível periculosidade, reincidentes, muitos deles, na prática de
crimes graves que vão do homicídio
à chefia do tráfico de drogas, serão
em breve postos em liberdade, já
que alguns deles completaram um
sexto da pena.
Conforme o noticiário dos jornais,
esses criminosos já acionaram seus
advogados para obter o benefício.
Quem sabe, em breve, estarão de
volta às ruas Fernandinho Beira-mar e Marcola. Tudo isso gera na
consciência do cidadão a descrença
na Justiça e, em muitos, a certeza de
que, em nosso país, o crime compensa.
Na célebre tragédia de Sófocles,
"Édipo Rei", a par da simbologia psicanalítica identificada por Freud, há
uma outra: a da irrenunciável necessidade de que a justiça seja feita. Tebas só se livrará da peste quando o
responsável pela morte de Laios for
identificado e punido. Sófocles nos
ensina que, quando a Justiça falta, a
comunidade humana adoece.
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