São Paulo, quarta-feira, 06 de agosto de 2008

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Crítica/teatro/"A Alma Boa de Setsuan"

Braz revigora peça clássica de Brecht

Com Denise Fraga à frente de elenco primoroso, montagem reduz caráter ideológico do texto e mostra atualidade do autor

SÉRGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Ao sair de "A Alma Boa de Setsuan", uma senhora se queixou à amiga: "Gosto de teatro com cenário mesmo, mais rico". "Mas se você for pensar", disse a outra, "tem um fundamento aí".
Brecht no teatro Renaissance: que heresia para os fundamentalistas épicos. E, no entanto, é justamente no reduto do teatro burguês que a dialética faz sentido.
Uma história bem contada, com alegria e teatralidade, por uma trupe em harmonia, a atenção para a fama do elenco e o luxo da produção transcendem para a busca de um fundamento. O público selecionado, encontrando a diversão que veio buscar, sente-se instigado enquanto cidadão a pensar em saídas para o egoísmo e o arrivismo aparentemente inevitáveis do capitalismo.
Divertir, entenda-se, não quer dizer disfarçar um incômodo dedo na ferida, assim como falta de luxo não quer dizer falta de sofisticação.
A adaptação assinada pelo diretor Marco Antônio Braz e pelo ator Marcos Cesana faz com que o texto soe menos como slogan ideológico e mais como um achado do momento. A pergunta da protagonista "como posso ser boa se tenho que pagar o aluguel?" comove e faz rir ao mesmo tempo.

Precisão chapliniana
Sem alarde, também, a eficácia e o bom gosto dos módulos deslizantes que compõem a cenografia de Marcio Medina, da luz de Wagner Freire, da trilha sonora de Theo Werneck, do figurino de Verônica Julian e do visagismo de Emi Sato, que vestem o palco com um orientalismo ágil e colorido, entre o kabuki e o mangá.
É claro que nada disso bastaria se a protagonista não tivesse o carisma e o talento de Denise Fraga. Brilha como Chen-Tê, a prostituta da imaginária aldeia chinesa Setsuan. A personagem ganha dos deuses uma soma para que abra sua loja de tabaco como recompensa por sua bondade. Justamente por isso, tem de aprender a ser má, em meio a seu amado que a explora e aos opressores que a ajudam, encarnando um alter ego masculino, o "primo" Chui-Ta.
A mistura de esperteza e ingenuidade, chapliniana na precisão dos gestos e na triangulação com a platéia, dessa atriz que habituou seu público a vê-la enquanto porta-voz da população comum, faz com que Denise Fraga seja uma Chen-Tê inesquecível, tão marcante quanto à de Maria Della Costa, que há cerca de 50 anos introduzia Bertolt Brecht no Brasil.

Elenco
Porém, o pulso firme de Braz nivela todos os atores do elenco por cima, possibilitando a Ary França desenvolver uma divindade impagável, mistura de Brecht com Jack Sparrow.
Joelson Medeiros encarna o ternamente canalha aviador Sun, o amado de Chen-Tê. Já Maurício Marques faz Wang com um notável desenho corporal. O ator Marcos Cesana, por fim, é como um policial saído diretamente dos Keystone Cops, em meio a um elenco primoroso.
Por fim, não haverá de ser por acaso que, depois de seis anos de insistência, a montagem estréie justamente às vésperas dos Jogos Olímpicos de Pequim. O espetáculo vem quando os olhos do mundo se voltam para uma China onde a ambigüidade do mercado contamina a utopia comunista e, mais do que nunca, a lucidez não dogmática de Brecht se faz necessária para pensar o mundo. Os deuses sabem a quem emprestam.


A ALMA BOA DE SETSUAN
Quando: sex., às 21h30, sáb., às 21h, dom., às 19h; até 28/9
Onde: teatro Renaissance (al. Santos, 2.233; Cerqueira César; tel. 0/ xx/11/3188-4147)
Classificação indicativa: não recomendado para menores de 12 anos
Quanto: sex. e dom., R$ 60; sáb., R$ 80
Avaliação: ótimo



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