São Paulo, sábado, 06 de agosto de 2011

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"Criamos uma rede que não tem cheiro"

Nos ensaios de "E se Obama Fosse Africano?", Mia Couto analisa modernidade, narrativa e condição africana

GABRIELA LONGMAN
DE SÃO PAULO

"A vida está a melhorar, sim senhor, mas está a melhorar muito mal."
A declaração feita por um moçambicano a uma enquete da TV parece conter os sentimentos explicitados por Mia Couto em "E se Obama Fosse Africano?", coletânea de ensaios que lança no Brasil nesta semana.
Sob os textos -conferências proferidas em ocasiões diversas-, subjaz um escritor dividido: preocupado com um progresso que deixa cada vez menos espaço para a palavra poética, para viagens subjetivas, para explorações de toda forma.
Ele está ao mesmo tempo satisfeito com os rumos de seu país, que depois de 16 anos de guerra (1976-1992) pode falar em estabilidade, democracia e paz. Leia, abaixo, os principais trechos da entrevista.

 

Folha - Muitos dos textos de "E se Obama..." criticam a atitude de vitimização dos africanos.
Mia Couto -
Isso está na mentalidade dos próprios africanos, uma autocondescendência, esta ideia de que a história foi sempre vencida pelos outros e contra os africanos. É uma visão estimulada pelas elites africanas, pela indústria da ajuda, pela corrupção.

Em que medida a figura de Obama é capaz de alterar a visão geral sobre a África?
Seria ingenuidade pensar que alguém, só porque tem ascendência africana, pode mudar a política americana. Infelizmente, a mesma forma quase dicotômica e maniqueísta de ver o mundo persiste. A África continua sendo distante e ignorada. Mais que ignorada, um continente sobre o qual pensa-se que sabe.

Parece haver um sentimento de perda que perpassa os textos: perda do espaço para histórias, perda da experiência da viagem...
É verdade. Se o diálogo multicultural fosse realmente verdadeiro, penso que a África teria uma coisa importante a dizer. Ali, posso me deixar ser invadido pelo outro, sem medo de perder o chão, sem medo de não ter regresso. Há uma permeabilidade maior ao outro.

Não existem novos modos de sociabilidade surgindo na esfera virtual?
Eu não acho que esta seja a melhor tecnologia, esta do contato com os outros pela mediatização da tela e do teclado. Não que eu seja amarrado ao passado, mas creio que há uma substituição daquilo que é mais sensual e mais carnal, que é a experiência vivida. Nós criamos uma rede, mas é uma rede que não tem cheiro.

Como avalia os rumos políticos de Moçambique?
Moçambique está recebendo investimentos do mundo inteiro, e eu não posso dizer que isso seja mau. O problema talvez seja ver isso como salvação, como resposta total. É verdade que, depois de 16 anos de guerra, a expectativa se reduz. O fato de termos estabilidade e paz é quase miraculoso.


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