São Paulo, segunda-feira, 06 de setembro de 2004

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Domingos Oliveira tem sua obra em cinema e TV reunida em mostra em São Paulo, a maior já feita

Caminhos do coração

PAULO SANTOS LIMA
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Se existe um artista em livre trânsito neste país, ele é Domingos Oliveira. Não há outro na história das artes brasileiras que tenha cruzado por tantos caminhos, perpassado pelo cinema, teatro, televisão e literatura, e reunido prêmios em 11 direções no cinema, mais de 50 no teatro, 22 peças e dois livros escritos, além de inúmeros trabalhos em minisséries globais e assinatura de roteiros. O diretor, entre amanhã e 10 de setembro, estará correndo de lado a outro, vindo do Rio a São Paulo para visitar a mostra "Diretores Brasileiros - Domingos Oliveira", na qual o CCBB apresenta boa parte de sua obra no cinema e na TV (leia destaques ao lado).
Ele vem à cidade também para a pré-estréia de seu mais recente filme, "Feminices", estrelado por sua mulher, a atriz Priscilla Rozenbaum, obra que também é vazada por vários elementos extra-cinematográficos e pessoais, algo perene em sua obra. Ele participará ainda de um debate na outra quinta, dia 16, no mesmo espaço cultural, sobre as linguagens da TV e do cinema.
E o fôlego atlético deste homem de 67 anos está agora canalizado entre a direção teatral e cinematográfica. Há outros dois projetos de longas-metragens que Domingos pretende levar adiante, caso consiga patrocínio. Um deles é um filme noir, "No Brilho da Gota de Sangue", com Paulo José e Pedro Cardoso. O outro é adaptação da peça "A Primeira Valsa".
A mostra também é uma chance (valiosa e inédita) de Domingos Oliveira ter sua filmografia honrada como típica de um cinema de autor. Afinal, ele é mais lembrado por algumas obras pontuais no cinema -como seu maior clássico, "Todas as Mulheres do Mundo" (1967)-, teatro e TV (o episódio "Vestido de Noiva", para a série "Aplausos", da Globo), do que pelo conjunto de sua obra, que aliás mantém forte coerência artística. Impressionado com a mostra -"Saberei mais sobre mim do que eu mesmo", brincou-, Domingos falou à Folha sobre sobre linguagem, sexo, televisão e política cultural.

 

Folha - Sua produção é mais lembrada por trabalhos isolados, sobretudo as comédias românticas...
Domingos de Oliveira -
Já fiz dramas, mas trabalho essencialmente com a comédia, que me parece o único modo contemporâneo de falar sério. Minha obra, na verdade, trabalha muito no esforço para fingir que não é séria. Heidegger diz que o mal do mundo não é a guerra, o capitalismo, a fome, mas sim a tagarelice. E as palavras estão gastas. No final das contas, eu me levo a sério e sei que sou um autor.

Folha - "Amores" é um filme de custo baixo, e que inaugurou seu retorno à direção em cinema. Como é a produção de seus filmes?
Oliveira -
Na verdade, estou tentando fazer duas linhas de trabalho: uma que dependa dos outros e outra que só dependa de mim. "Feminices", que é adaptado da peça de Clarice Niskier, saiu do meu bolso, custando até agora R$ 18 mil. Precisamos de R$ 300 mil para o lançamento. Rendendo, vai pagar seus sócios e as pessoas que trabalharam de graça. É o tipo de dívida que eu não preciso pagar porque são todos amigos. É um "Filme Zero" (risos). Acho que é um caminho brasileiro. Tudo que despontou lá fora foi pelo filme de autor, de arte, independentemente de ser ou não de grande orçamento. Não tem sentido patrocinar filmes ou peças, mas sim pôr o dinheiro público na infra-estrutura das atividades, na organização da atividade.

Folha - O senhor disse certa vez que seus filmes são previamente "ensaiados" durante as peças, e os atores estão preparados para as filmagens. O cinema seria, então, um meio, uma ferramenta?
Oliveira -
Sou diretor, ator, roteirista, fiz iluminação, cenário e até cantei, mas na verdade sou um escritor. Se não me dessem o cinema para descrever meu mundo, eu usaria outro meio. Mas é um instrumento com o qual eu tenho muita facilidade, eu sei onde botar a câmera. Acho que é da minha geração. E apesar do tom de improviso que há em meus filmes, acredito na loucura sob controle. Tenho o meu roteiro, fechadíssimo, e é ótimo fazer planos para poder desobedecê-los. Há algo irônico, pois eu tenho filmado peças, mas os filmes ficam com pinta de cinema. E fazendo esses filmes é que veio a percepção de que no cinema basta Stanislavski, conhecer o seu papel. No teatro, precisamos de todo o Stanislavski e ainda mostrar que está se fazendo teatro, falar alto, ser expressivo. E o meu cinema, de alguma forma, mostra um pouco isso, um cinema em que mostro estar fazendo cinema.

Folha - O senhor dirigiu trabalhos elogiados na televisão, levando muitos elementos cinematográficos para a tela pequena. Há diferenças entre as duas linguagens?
Oliveira -
Acho que há pessoas que sabem filmar, e outras, não. Para mim, é inconcebível colocar várias câmeras, porque o cinema é visto sob o olho de uma só pessoa, que é o diretor, que tem de dar a coerência dele. Nesse sentido, televisão é a mesma coisa. Sua linguagem ficou presa à câmera fazendo um plano geral e duas fazendo os plano e contra-plano, e a TV encheu o saco da gente com isso. No cinema, tem uma hora que você cai nisso, mas não é só. Ali tem milhares de linguagens além disso. O cinema narra com mais elementos do que um rosto que responde a outro. E a TV é muito árdua, dura, ótima como escola, mas ruim pra alma.

Folha - Seu cinema lembra um pouco o de Truffaut, mas há sempre uma felicidade frágil, como se a psicanálise, o racional, não dessem conta de explicar sentimentos como o amor ou as crises existenciais.
Oliveira -
O único verdadeiro final feliz é se fôssemos imortais. O homem é um insatisfeito, um desesperado, a condição humana é uma coisa terrível, o terror e a glória estão presentes o tempo inteiro, mas você tem que saber de que lado vê a coisa, e é por isso que meus filmes parecem felizes.

Folha - Por que seu cinema sempre tematiza o amor e o sexo?
Oliveira -
O amor é a vocação humana, o eixo de tudo, o efeito colateral do sexo (risos). Este me interessa porque é o assunto do século, que vem sendo tratado com liberdade agora. Não há cena de sexo em Dostoiévski, em Shakespeare. O sexo é, enfim, um assunto moderno por excelência.


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