São Paulo, quarta-feira, 06 de setembro de 2006

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

Anjos ou macacos?

Não há cientista sério que, a certa altura da conversa, não convide o interlocutor a procurar o setor de teologia

NO SÉCULO 19, o incomparável Benjamin Disraeli declarava no Parlamento britânico que, entre anjos ou macacos, ele estava do lado dos anjos. A discussão lidava com as teorias de Darwin, saídas do forno e ainda a queimar a sociedade vitoriana. E se os homens não fossem feitos à imagem de Deus? E se os nossos antepassados estivessem no Zôo de Londres e não nas páginas do Gênesis?
Um século depois, a luta entre anjos e macacos ainda não parou de nos assombrar. Nos Estados Unidos, alguns Estados se recusam a aceitar as teorias evolucionistas nos currículos escolares, optando antes pelo criacionismo puro e duro (ou por versões matizadas de "desígnio inteligente"). E até Bento 16 resolveu reunir estudiosos na matéria para analisar e definir a posição da igreja sobre a matéria. Não fui convidado para Castel Gandolfo.
Mas, se fosse, diria que a guerra sempre me pareceu francamente desnecessária. E desnecessária porque anjos e macacos sempre responderam a questões diferentes, que é inútil misturar.
A ciência pode, e deve, oferecer uma resposta processual: saber os "comos" sempre foi a missão dos laboratórios. Mas nada disso impede que a religião se ocupe dos "porquês": ainda que a ciência seja capaz de recuar à primeira partícula do Universo, haverá um momento de silêncio radical em que a razão humana é obrigada a recuar.
Não há cientista minimamente sério que, a dada altura da conversa, não convide o interlocutor a atravessar a rua e a bater à porta do departamento de teologia. Porque ele não tem mais respostas: não tem respostas para o início e para o fim.
E, já agora, para os entretantos também. Admito que os homens tenham macacos na família. Admito, aliás, que alguns homens ainda o sejam. Mas existem certos traços da nossa humanidade a que as teorias evolucionistas, especificamente centradas em questões de sobrevivência e reprodução, são incapazes de responder. Anthony O'Hear, em "Beyond Evolution" (Oxford University Press, 220 págs.), escreveu um dos melhores tratados sobre a matéria ao inquirir como pode o evolucionismo explicar a nossa busca de conhecimento, de verdade moral e mesmo de experiência estética.
O'Hear não nega que os homens sejam macacos; mas O'Hear nega que os homens se comportem como macacos e, mais, que optem tantas vezes por caminhos que não apenas desmentem o evolucionismo como são contrários a este. Fugir de Atenas talvez fosse solução para Sócrates, mas, ao preferir ficar, Sócrates não escolheu a sobrevivência (um fato que tanto incomodava Nietzsche). Questionou, pelo contrário, se valeria a pena sobreviver de forma desonrosa.
Os evolucionistas reduzem a atitude de Sócrates a um gesto de fraqueza autodestrutiva? A tese não resolve o dilema: porque, para nós, seus leitores, intolerável seria que Sócrates tivesse fugido. De onde provém este sentido de honra que suplanta qualquer consideração evolutiva? Confesso que não sei. Mas sei que, entre anjos ou macacos, estarei sempre do lado dos homens.


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