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MARCELO COELHO
As ilusões de "A Flauta Mágica"
Bergman filmou como se acreditasse na trama, mas denunciando sua falsidade encantadora
REVEJO "A Flauta Mágica", de
Ingmar Bergman, que saiu
recentemente em DVD, 30
anos depois de assistir ao filme pela
primeira vez. Qualquer filme do diretor sueco só podia ser aplaudido
em 1976, embora parecesse um bocado estranha sua decisão de encenar uma ópera de Mozart, com os recursos mais singelos do mundo.
Tratava-se de um conto de fadas
bastante ingênuo, afinal, apesar de
impregnado de música sublime. Os
cantores não eram grande coisa: a
voz de Sarastro não tinha a ressonância necessária para o papel de
grande sábio, a Rainha da Noite era
quase tímida nos momentos de vilania, e os Três Meninos desafinavam
bastante. E como explicar que, no
meio das insuportáveis angústias de
"Gritos e Sussurros" e "O Ovo da
Serpente", Bergman se voltasse para
aquele mundo meio boboca de sininhos encantados, rainhas malvadas,
príncipes e princesas?
A explicação não era difícil. Bergman filmou "A Flauta Mágica" como
se acreditasse em toda a história,
mas denunciando sem parar sua falsidade encantadora. Quando os versos do libreto se tornavam infantis e
edificantes demais, o filme os projetava como se fossem letreiros, e os
cantores, olhando diretamente para
a câmera, seguravam-nos em confiante didatismo.
Tudo se passava explicitamente
num teatrinho de província: cenários pobres e efeitos cênicos de segunda categoria acentuavam o desencanto bergmaniano diante do
mundo real. A magia do teatro sempre foi, para Bergman, uma espécie
de escapismo desesperado: não me
lembro se em "O Sétimo Selo" ou em
"O Rosto" havia uma trupe de saltimbancos entregues à pura celebração da vida: coisa que só podia subsistir enquanto acreditassem na
própria ilusão.
Numa duplicação da ironia, o filme mostrava os bastidores da ópera,
como se ali, pelo menos, encontrássemos uma realidade mais amarga
que os confeitos mozartianos. Entretanto, os bastidores apenas reproduziam a ilusão do palco. O sábio
Sarastro, no camarim, entregava-se
a graves leituras. A perversa Rainha
da Noite, diante de um cartaz de "é
proibido fumar", acendia um cigarro. Tudo isso, em 1976, dava conta
do filme de Bergman: o uso da ironia
justificava o aparente capricho de
filmar Mozart, depois de tantos
mergulhos na miséria humana.
Revendo "A Flauta Mágica", noto
como eram forçadas essas intenções
interpretativas. Não que estivessem
erradas; mas a metalinguagem e a
ironia, que apareciam casualmente
no filme, são na verdade insuficientes para sustentar o conjunto.
Arrisco uma interpretação alternativa. Tudo é estranho desde a primeira cena. O príncipe Tamino, herói da história, desmaia de medo ao
defrontar-se com um dragão. É salvo pelas emissárias da vilã, as Três
Damas da Noite. Elas se encantam
com a beleza, quase feminina, do jovem. Um jogo de sedução se estabelece. Quanto a Pamina, a bela moça
prometida ao príncipe desmaiado,
outros jogos de sedução a ameaçam.
O brutal guardião Monostatos está a
ponto de violentá-la; e mesmo o
benfazejo e elementar Papageno dedica-lhe frases ambíguas.
Para que Tamino e Pamina se entreguem um ao outro, rituais de passagem terão de ser cumpridos. Assim como nas cerimônias de iniciação da maçonaria, que inspiraram a
ópera de Mozart, Tamino terá de enfrentar perigos que, na verdade, são
pura encenação, mera cenografia do
medo. Ele não sabe disso e dá provas
de coragem. O espectador se espanta: foi firme agora e, entretanto, desmaiou diante do dragão... Mas aí é
que entra a supremacia artística de
Bergman. Desde o começo, o filme
afirmara a falsidade de toda a história. O dragão diante do qual o príncipe desmaia não passava, visivelmente, de um ajudante de cena qualquer,
vestido em roupagens precárias.
Ou seja: o perigo real que abalou o
nosso herói era tão falso quanto os
perigos ilusórios que ele iria superar. O que está em questão não é
propriamente a sua coragem, mas
sua capacidade de manter-se fiel à
noiva prometida.
Até por ser fraco demais, ele não
cede às seduções das Três Damas da
Noite. Do mesmo modo, transida de
medo, Pamina salva a sua virgindade perante Monostatos e Papageno.
Se quisermos, nessa ópera não se
afirma, como gostaria Duda Mendonça, que "a esperança venceu o
medo". Duas faces, afinal, da mesma
moeda. Quem vence o medo é outra
coisa: fidelidade, compromisso, caráter, pureza de coração, talvez.
Bergman sorri de tudo isso: o medo
permanece, e só num conto de fadas
os dragões não são reais.
coelhofsp@uol.com.br
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