São Paulo, quarta-feira, 06 de setembro de 2006

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MARCELO COELHO

As ilusões de "A Flauta Mágica"

Bergman filmou como se acreditasse na trama, mas denunciando sua falsidade encantadora

REVEJO "A Flauta Mágica", de Ingmar Bergman, que saiu recentemente em DVD, 30 anos depois de assistir ao filme pela primeira vez. Qualquer filme do diretor sueco só podia ser aplaudido em 1976, embora parecesse um bocado estranha sua decisão de encenar uma ópera de Mozart, com os recursos mais singelos do mundo.
Tratava-se de um conto de fadas bastante ingênuo, afinal, apesar de impregnado de música sublime. Os cantores não eram grande coisa: a voz de Sarastro não tinha a ressonância necessária para o papel de grande sábio, a Rainha da Noite era quase tímida nos momentos de vilania, e os Três Meninos desafinavam bastante. E como explicar que, no meio das insuportáveis angústias de "Gritos e Sussurros" e "O Ovo da Serpente", Bergman se voltasse para aquele mundo meio boboca de sininhos encantados, rainhas malvadas, príncipes e princesas?
A explicação não era difícil. Bergman filmou "A Flauta Mágica" como se acreditasse em toda a história, mas denunciando sem parar sua falsidade encantadora. Quando os versos do libreto se tornavam infantis e edificantes demais, o filme os projetava como se fossem letreiros, e os cantores, olhando diretamente para a câmera, seguravam-nos em confiante didatismo.
Tudo se passava explicitamente num teatrinho de província: cenários pobres e efeitos cênicos de segunda categoria acentuavam o desencanto bergmaniano diante do mundo real. A magia do teatro sempre foi, para Bergman, uma espécie de escapismo desesperado: não me lembro se em "O Sétimo Selo" ou em "O Rosto" havia uma trupe de saltimbancos entregues à pura celebração da vida: coisa que só podia subsistir enquanto acreditassem na própria ilusão.
Numa duplicação da ironia, o filme mostrava os bastidores da ópera, como se ali, pelo menos, encontrássemos uma realidade mais amarga que os confeitos mozartianos. Entretanto, os bastidores apenas reproduziam a ilusão do palco. O sábio Sarastro, no camarim, entregava-se a graves leituras. A perversa Rainha da Noite, diante de um cartaz de "é proibido fumar", acendia um cigarro. Tudo isso, em 1976, dava conta do filme de Bergman: o uso da ironia justificava o aparente capricho de filmar Mozart, depois de tantos mergulhos na miséria humana.
Revendo "A Flauta Mágica", noto como eram forçadas essas intenções interpretativas. Não que estivessem erradas; mas a metalinguagem e a ironia, que apareciam casualmente no filme, são na verdade insuficientes para sustentar o conjunto. Arrisco uma interpretação alternativa. Tudo é estranho desde a primeira cena. O príncipe Tamino, herói da história, desmaia de medo ao defrontar-se com um dragão. É salvo pelas emissárias da vilã, as Três Damas da Noite. Elas se encantam com a beleza, quase feminina, do jovem. Um jogo de sedução se estabelece. Quanto a Pamina, a bela moça prometida ao príncipe desmaiado, outros jogos de sedução a ameaçam.
O brutal guardião Monostatos está a ponto de violentá-la; e mesmo o benfazejo e elementar Papageno dedica-lhe frases ambíguas. Para que Tamino e Pamina se entreguem um ao outro, rituais de passagem terão de ser cumpridos. Assim como nas cerimônias de iniciação da maçonaria, que inspiraram a ópera de Mozart, Tamino terá de enfrentar perigos que, na verdade, são pura encenação, mera cenografia do medo. Ele não sabe disso e dá provas de coragem. O espectador se espanta: foi firme agora e, entretanto, desmaiou diante do dragão... Mas aí é que entra a supremacia artística de Bergman. Desde o começo, o filme afirmara a falsidade de toda a história. O dragão diante do qual o príncipe desmaia não passava, visivelmente, de um ajudante de cena qualquer, vestido em roupagens precárias.
Ou seja: o perigo real que abalou o nosso herói era tão falso quanto os perigos ilusórios que ele iria superar. O que está em questão não é propriamente a sua coragem, mas sua capacidade de manter-se fiel à noiva prometida.
Até por ser fraco demais, ele não cede às seduções das Três Damas da Noite. Do mesmo modo, transida de medo, Pamina salva a sua virgindade perante Monostatos e Papageno. Se quisermos, nessa ópera não se afirma, como gostaria Duda Mendonça, que "a esperança venceu o medo". Duas faces, afinal, da mesma moeda. Quem vence o medo é outra coisa: fidelidade, compromisso, caráter, pureza de coração, talvez.
Bergman sorri de tudo isso: o medo permanece, e só num conto de fadas os dragões não são reais.


coelhofsp@uol.com.br

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