São Paulo, segunda-feira, 06 de setembro de 2010

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Chile em transe

Documentarista investiga ossadas enterradas no deserto do Atacama durante ditadura de Pinochet

Divulgação
Cena de "Nostalgia da Luz", no qual Patricio Guzmán usa astronomia como metáfora da busca por desaparecidos

LENEIDE DUARTE-PLON
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE PARIS

Diretor da trilogia "A Batalha do Chile" (1975-79), "um dos dez filmes políticos mais importantes do mundo", segundo a revista americana "Cineaste", o chileno Patricio Guzmán continua encantando a crítica mundial.
O novo "Nostalgia da Luz", apresentado oficialmente no último Festival de Cannes, foi considerado um "filme extraordinário" pelo "Le Monde". O "L'Humanité" louvou sua "beleza de tirar o fôlego". E a "Première", ainda, chamou-o de "fábula kubrickiana".
O documentário trata da observação das estrelas a partir do deserto de Atacama, no Chile. Mas é uma metáfora para falar do país e de seu passado traumático.
"O golpe foi um choque tão grande que produziu uma paralisia mental", afirma o cineasta sobre a ditadura militar que derrubou Salvador Allende, em 1973.
Chilenas ainda buscam os ossos dos maridos e noivos desaparecidos durante a ditadura Pinochet, que veio a seguir. E o deserto de Atacama é a imensidão onde elas recolhem com pequenas pás os menores vestígios de ossos, que estão dispersos.
"Nostalgia da Luz" será apresentado no próximo Festival do Rio, que acontece a partir de 23 de setembro. Abaixo, trechos da entrevista que Guzmán concedeu à Folha em Paris, onde vive.

 

Folha - Em "Nostalgia da Luz", a astronomia é um pretexto para falar das mulheres que procuram os ossos de seus desaparecidos na ditadura de Pinochet. Uma das mulheres diz: "Somos a lepra do Chile". Por que elas se veem assim?
Patricio Guzmán -
Porque esse grupo de mulheres, no início cerca de 40, hoje é formado de apenas dez. Algumas desapareceram. Outras se mudaram, foram morar longe do deserto onde procuram os ossos. Mas há também o cansaço da idade.
As sobreviventes pensam que o Chile esqueceu completamente da tragédia, que a amnésia venceu, elas se sentem diferentes. Por isso uma delas diz que são a lepra do Chile, porque, quando se fala dessa doença, as pessoas se vão. O esquecimento venceu e esse grupo é o único que denuncia um Chile que os outros querem esquecer.

A luta dessas mulheres é mais difícil do que a das famosas mães da Plaza de Mayo?
Claro, porque a luta das mães da Plaza de Mayo foi apoiada pelo governo, foi reconhecida. Os torturadores foram presos, os três generais da junta militar também. Houve uma resposta, alguns netos apareceram. Existe a satisfação de ver os resultados dessa luta. No Chile, 40% dos torturadores e dos responsáveis militares de violação dos direitos humanos foram julgados. Mas falta julgar 60%, é muito.

Seu filme se passa no deserto do Atacama e mostra arqueólogos e astrônomos, além dessas mulheres. Como você encontrou a chave pra reunir esses dois polos?
Foi difícil, pois, quando se escreve um roteiro de documentário, começamos por pequenas peças isoladas, por pedaços. Sempre tive a intenção de fazer um filme sobre o norte do Chile, mas sem uma ideia concreta. Pensava que era um bom lugar por causa das minas, dos observatórios, das múmias, dos desaparecidos da ditadura. Era o território em si mesmo.

O sr. acha que o recente acidente na mina do Chile poderia ter sido evitado?
O acidente é uma manifestação típica do Chile. O sistema de segurança está fora das normas. Os condutores de ventilação não têm escadas como deveriam ter. A companhia mineradora não fez o necessário para garantir a segurança dos mineiros. O governo de Bachelet permitiu a reabertura da mina mesmo a companhia não tendo cumprido as normas de segurança. Isso é típico do Chile, mas é também o que vemos na China e na Rússia, onde acidentes horríveis ocorrem frequentemente .

O governo atual está fazendo uso político do acidente?
Acho que ele está fazendo o possível para salvar os mineiros, mas o diagnóstico é otimista demais. O espeleólogo francês Michel Siffre, um dos mais experientes do mundo, que passou vários meses em situações parecidas para estudar as grutas, afirmou que nenhum desses mineiros sairá totalmente sem marcas, psicológicas e físicas. Isso na melhor das hipóteses. Quanto ao sistema de salvamento, ele é totalmente inédito e ninguém pode garantir que dará certo.

E por que o Chile se recusa a encarar seu passado?
Isso é um mistério. Eu me pergunto a mesma coisa. O golpe foi um choque tão grande que produziu uma paralisia mental. No Chile as pessoas têm medo. Até hoje, há pessoas incapazes de falar de política num local público. Há uma espécie de reserva, de medo de ser ouvido. Todos os chilenos que estavam na Espanha naquela época foram fichados pela polícia franquista.

Você pensou em ser astrônomo. Por que acabou preferindo o cinema e a política?
Quando a gente vive acontecimentos tão fortes, é difícil escapar deles.

Você foi tentado pela ficção?
Fiz um mau filme de ficção nos anos 1980. Ninguém conhece. Um fracasso total. Estava traumatizado pelo golpe do Chile e pensava que devia fazer ficção para sair do pesadelo chileno. Ele se chama "Rosa dos Ventos".


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