São Paulo, Quarta-feira, 06 de Outubro de 1999
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MARCELO COELHO

Nós, os paulistas, somos muito chatos

No começo, espantei-me com a repercussão do incidente João Gilberto-Credicard e não pretendia comentá-lo. Um caso besta. Mas terminei intrigado, na verdade, com o surgimento de tantas páginas e glosas na imprensa.
No fundo, acho que esse tratamento reflete uma sede de polêmicas, uma sede de conflito. Há algo de encruado no ar. A vaia, o eco, a careta foram sinais meio irrelevantes de algo não tão irrelevante assim.
Antes disso, uma "polêmica" parecida surgiu quando Regina Casé criticou a falta de senso de humor dos paulistas. Lembremos também que o jornalista Cláudio Tognolli, na revista "Caros Amigos", já tinha atacado o que chamou de "máfia do dendê", o jogo de elogios mútuos a que se dedicam os artistas baianos.
A irritação dos brasileiros diante dos paulistas, e vice-versa, não é de agora. Como paulista, sinto-me invejosamente distante do que o Brasil tem de bom. Compreendo a frase de Nelson Rodrigues, segundo a qual a pior solidão é a companhia de um paulista. Somos muito chatos.
Claro que um paulista pode ser interessante ou até espirituoso numa conversa. Falta-lhe, entretanto, aquilo que encontramos em qualquer carioca, mineiro, alagoano ou amazonense: a graça, o encanto.
É possível topar com um paulista que converse bem; mas é difícil ver um paulista que fale bem. O baiano toma a palavra como se sempre tivesse sido dono dela: um pouco como Pelé fazia com a bola. O mineiro, quando ouve, não se sente roubado como o paulista. No Nordeste, cada incidente sem importância vira um caso a ser contado, ganha foros de epopéia cômica ou discurso no Senado; em São Paulo, vira apenas motivo de reclamação e birra.
Basta sair de São Paulo para se notar em qualquer pessoa um desarmamento, uma distensão pessoal, uma espécie de confiança que não é ingênua, uma espécie de nobreza que não é arrogante, uma espécie de disponibilidade que não é servil.
Os paulistas reclamam, implicam, buzinam, vaiam. Pior: passaram a considerar isso um exercício de cidadania. Mas é uma cidadania sem participação, uma cidadania sem política, uma cidadania ranheta e sem discurso.
Observo que João Gilberto, quando criticou o som do Credicard Hall e se indispôs com a horrorosa platéia paulista do evento, foi muito paulista também; chato como só um paulista é capaz.
Mas a discussão sobre a personalidade típica dos habitantes de cada Estado brasileiro tende a prolongar-se infinitamente; é clássica e roça o preconceito. Não explica, além disso, o conflito atual, a tensão da conjuntura, que é outra. Cláudio Tognolli contra a "máfia do dendê", Caetano contra a platéia do Credicard Hall, talvez sejam sinais da crise de uma aliança política, a do PSDB com o PFL.
Sempre desconfiei de um discurso em prol da "modernidade" -o de Fernando Henrique- que precisasse, para ser posto em prática, do arcaísmo pefelista.
É preciso notar, contudo, que esse discurso da "modernidade" se divide em duas partes. De um lado, defende-se a privatização, o desmonte do Estado, o fim dos privilégios do funcionalismo público. De outro lado, mas tendo aparentemente tudo a ver, a atração de capitais externos, a flexibilidade diante do mercado global, a política econômica recessiva.
O que parece um corpo doutrinário único tem efeitos contraditórios do ponto de vista da classe dominante. Para a burguesia industrial paulista, nada mais correto do que a desestatização, por exemplo. Mas nada mais prejudicial do que uma taxa de juros alta, o que de modo algum incomoda quem joga com o capital financeiro.
No começo da era FHC, parecia que as privatizações garantiriam uma diminuição da dívida interna e, com isso, inflação baixa e juros baixos.
A Fiesp estava, creio, feliz. Mas o que houve foi desnacionalização e recessão. A burguesia industrial paulista sofreu sob o governo de seu filho adotivo.
Quanto ao PFL, que teoricamente seria o grande otário da modernização cardosiana -à medida que o governo desestatizava e impunha mais capitalismo sobre os feudos nordestinos-, ocorreu o contrário. A míngua de recursos estatais fortaleceu a disciplina partidária; centralizou o poder em ACM e Marco Maciel, coronelzão e coronelzinho agora elevados a esferas federais. Só o PMDB, justamente por ser menos coronelista, perde e esperneia com as restrições no orçamento.
Quem estava no Credicard Hall? Que burguesia? Paulista, sem dúvida. Mas desconfio que os emergentes da especulação, da propaganda, e da subsidiária desta, a televisão. A Fiesp, se vaiou, é porque estava de fora.
João Gilberto e Caetano Veloso detestaram o público e o teatro. Mas detestaram na medida mesma em que ACM detesta FHC: dependendo de uma "modernidade" arrivista e desnacionalizada para manter, mais forte e retórica do que nunca, uma tradição oligárquica, nacional, personalista, sentimental, "cultural".
Não é por acaso que João Gilberto reclamou do eco. A metáfora caberia melhor se fosse Caetano quem tivesse reclamado, mas vá lá: reclamou porque viu, no teatro e no público, o espelho de sua opção política.



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