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CRÍTICA
Sontag reinventa-se em Maryna Zalenska
BIA ABRAMO
FREE-LANCE PARA A FOLHA
É apenas uma aproximação
temporal fortuita, mas não
deixa de ser um exercício interessante ler "Na América", de Susan
Sontag, neste momento em que a
idéia da América tal como a conhecíamos corre o risco de modificar-se para sempre.
Parte da América promissora e
aberta dos séculos 19 e 20 desabou
junto com as torres, e a ensaísta
Sontag foi das primeiras vozes a
se manifestar nesse sentido.
No romance, publicado nos
EUA ano passado e que ganhou o
National Book Award de 2000,
um grupo de poloneses -uma
atriz, um escritor, um pintor, o
conde que generosamente financia a empreitada- agregados decide tentar uma nova vida num
país ainda mítico, vasto, selvagem.
Não são imigrantes convencionais, premidos pela necessidade
econômica ou atraídos pela promessa de enriquecimento, mas
sim pessoas diversas que buscam
reinventar sua vida.
No centro, está uma grande
atriz e mentora da aventura,
Maryna. Na Polônia natal, ela de
alguma forma "representara as
aspirações de uma nação", mas
nos EUA inicialmente renuncia à
profissão para tentar ser fazendeira numa espécie de comunidade
de inspiração vagamente socialista no sul da Califórnia.
Quando a aventura utópica fracassa, Maryna volta ao teatro, só
que na América. Em fins do século 19, a arte e a cultura já estão sob
o domínio do showbiz e sofrendo
as modificações que viriam a ter o
nome de cultura de massa.
De qualquer maneira, fazendeira ou atriz, ela se deixa reinventar
pela América, aí incluindo sua vida amorosa, que oscila entre um
marido amigo, Bogdan, e o amante escritor, Ryszard.
As sucessivas transformações
de Maryna, incluindo a grafia de
seu próprio nome, de alguma maneira correspondem às mudanças
operadas pelo século 20 no sonho
americano, da terra de bravos onde se vence pelo esforço individual ao cinismo pragmático.
A reinvenção é possível, mas terá seu preço. Maryna alterna a
adesão admirada pelas possibilidades da nova terra com o desconforto com certas pequenezas
da vida moral e cultural dos americanos, sentimentos que, embora
no romance situadas no final do
século 19, continuam reverberando entre estrangeiros que fazem
ou apenas visitam a América.
Velocidade
Ao mesmo tempo, "Na América" é narrado como um notável
épico, em que se desenrolam paisagens amplas e cheias de desafios, novas cidades a serem decifradas, grandes deslocamentos de
tempo e de espaço.
A estranheza da chegada de
Ryszard a Nova York, a idéia de ir
para a Califórnia -uma "América dentro da América", como define um dos personagens-, a extraordinária capacidade de criar
fenômenos de qualquer espécie,
como o da transformação da atriz
européia em uma estrela americana, tudo isso assume dimensões
grandiosas e é contado com o
mesmo ritmo vertiginoso que o
país das 13 colônias transformou-se em império e imprimiu ao resto do mundo.
É pena que talvez essa velocidade e a parcialidade indisfarçada
que a escritora demonstra em relação a Maryna tenham comprometido de alguma forma a construção de outros personagens,
que habitam o romance quase como meros coadjuvantes da grande estrela.
Mesmo os dois amores de
Maryna, o marido e o amante, são
mais ou menos abandonados pela
escritora. Do marido Bogdan, sabemos por meio de entradas em
seu diário de uma hesitante homossexualidade da qual Maryna
mal toma conhecimento.
O amado Ryszard tem mais voz
e mais corpo, mas, uma vez dispensado pela atriz, também desaparece sem quase deixar traços.
Isso, entretanto, não compromete a beleza de "Na América".
Se tomamos como exemplo o
capítulo inicial de Susan Sontag,
em que a narradora escolhe e nomeia seus personagens como
uma metáfora do processo de
criação do romance, já está ali
mais ou menos anunciado que
trata-se de um livro de um personagem só, que é também a própria escritora no papel de Maryna
Zalenska.
NA AMÉRICA
In America
Autor: Susan Sontag
Editora: Companhia das Letras
Tradutor: Rubens Figueiredo
Quanto: R$ 37,50 (482 págs.)
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