São Paulo, sábado, 06 de outubro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CRÍTICA

Sontag reinventa-se em Maryna Zalenska

BIA ABRAMO
FREE-LANCE PARA A FOLHA

É apenas uma aproximação temporal fortuita, mas não deixa de ser um exercício interessante ler "Na América", de Susan Sontag, neste momento em que a idéia da América tal como a conhecíamos corre o risco de modificar-se para sempre.
Parte da América promissora e aberta dos séculos 19 e 20 desabou junto com as torres, e a ensaísta Sontag foi das primeiras vozes a se manifestar nesse sentido.
No romance, publicado nos EUA ano passado e que ganhou o National Book Award de 2000, um grupo de poloneses -uma atriz, um escritor, um pintor, o conde que generosamente financia a empreitada- agregados decide tentar uma nova vida num país ainda mítico, vasto, selvagem.
Não são imigrantes convencionais, premidos pela necessidade econômica ou atraídos pela promessa de enriquecimento, mas sim pessoas diversas que buscam reinventar sua vida.
No centro, está uma grande atriz e mentora da aventura, Maryna. Na Polônia natal, ela de alguma forma "representara as aspirações de uma nação", mas nos EUA inicialmente renuncia à profissão para tentar ser fazendeira numa espécie de comunidade de inspiração vagamente socialista no sul da Califórnia.
Quando a aventura utópica fracassa, Maryna volta ao teatro, só que na América. Em fins do século 19, a arte e a cultura já estão sob o domínio do showbiz e sofrendo as modificações que viriam a ter o nome de cultura de massa.
De qualquer maneira, fazendeira ou atriz, ela se deixa reinventar pela América, aí incluindo sua vida amorosa, que oscila entre um marido amigo, Bogdan, e o amante escritor, Ryszard.
As sucessivas transformações de Maryna, incluindo a grafia de seu próprio nome, de alguma maneira correspondem às mudanças operadas pelo século 20 no sonho americano, da terra de bravos onde se vence pelo esforço individual ao cinismo pragmático.
A reinvenção é possível, mas terá seu preço. Maryna alterna a adesão admirada pelas possibilidades da nova terra com o desconforto com certas pequenezas da vida moral e cultural dos americanos, sentimentos que, embora no romance situadas no final do século 19, continuam reverberando entre estrangeiros que fazem ou apenas visitam a América.

Velocidade
Ao mesmo tempo, "Na América" é narrado como um notável épico, em que se desenrolam paisagens amplas e cheias de desafios, novas cidades a serem decifradas, grandes deslocamentos de tempo e de espaço.
A estranheza da chegada de Ryszard a Nova York, a idéia de ir para a Califórnia -uma "América dentro da América", como define um dos personagens-, a extraordinária capacidade de criar fenômenos de qualquer espécie, como o da transformação da atriz européia em uma estrela americana, tudo isso assume dimensões grandiosas e é contado com o mesmo ritmo vertiginoso que o país das 13 colônias transformou-se em império e imprimiu ao resto do mundo.
É pena que talvez essa velocidade e a parcialidade indisfarçada que a escritora demonstra em relação a Maryna tenham comprometido de alguma forma a construção de outros personagens, que habitam o romance quase como meros coadjuvantes da grande estrela.
Mesmo os dois amores de Maryna, o marido e o amante, são mais ou menos abandonados pela escritora. Do marido Bogdan, sabemos por meio de entradas em seu diário de uma hesitante homossexualidade da qual Maryna mal toma conhecimento.
O amado Ryszard tem mais voz e mais corpo, mas, uma vez dispensado pela atriz, também desaparece sem quase deixar traços.
Isso, entretanto, não compromete a beleza de "Na América".
Se tomamos como exemplo o capítulo inicial de Susan Sontag, em que a narradora escolhe e nomeia seus personagens como uma metáfora do processo de criação do romance, já está ali mais ou menos anunciado que trata-se de um livro de um personagem só, que é também a própria escritora no papel de Maryna Zalenska.


NA AMÉRICA
In America    
Autor: Susan Sontag
Editora: Companhia das Letras
Tradutor: Rubens Figueiredo
Quanto: R$ 37,50 (482 págs.)




Texto Anterior: Frase
Próximo Texto: Mônica Bergamo: Operação Conceição
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.