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NELSON ASCHER
Ao Oriente do Oriente
Quando, em 1954, meus
pais, nascidos na Hungria,
estavam a caminho do Brasil, seu
navio parou por um ou dois dias
em Dacar, no Senegal. Tão logo
desembarcaram, foram cercados
por garotos, todos vendendo algum tipo de objeto artesanal. Interessando-se por uma faca esculpida em madeira, mas com a memória já devidamente distanciada das aulas de geografia em suas
respectivas escolas, eles perguntaram um ao outro qual seria a língua em que deveriam negociar
com o vendedor. E este lhes respondeu no idioma deles: "Podemos tratar disso em húngaro".
Habitantes que somos de uma
nação de imigrantes, nós, brasileiros, estamos mais do que habituados não só a ouvir o português
falado com todos os possíveis e
impossíveis sotaques como tampouco nos surpreende que ele seja
usado por gente de qualquer etnia ou origem. Se isso vale para
algumas línguas, como o inglês, o
espanhol ou o francês, antes dos
anos 60 ainda não se esperava
que um vietnamita desatasse a
conversar em sueco, um indiano
em lituano ou um senegalês em
húngaro. Sobretudo em Dacar.
Os idiomas mencionados, bem
como o tcheco e o eslovaco, o servo-croata, o esloveno, o búlgaro, o
romeno e o danês etc., eram e, até
certo ponto seguem sendo, considerados segredos de família. Se
há, por um lado, línguas imperiais, que, primeiro, se expandiram mundo afora e, depois, passaram a acolher em casa seus ex-súditos coloniais, existem outras
que, confinadas a um determinado nicho ecológico, pertencem
preponderantemente aos falantes
nativos.
O vendedor senegalês hungarófono cuja faca, arrematada a
bom preço, atualmente me pertence tinha, é claro, uma história.
Desde que ficara órfão, havia sido
criado numa missão local -creio
que de dominicanos húngaros.
Singularidades individuais ou
históricas semelhantes elucidam,
por exemplo, o caso relatado por
um diplomata húngaro que, tão
logo seu país abriu uma embaixada em Adis Abeba depois da Segunda Guerra, foi visitado por
etíopes típicos portadores de nomes atípicos como Abdula Szabó
ou Mustafá Kovács (Szabó e Kovács são alfaiate e ferreiro em
húngaro). Investigando o mistério, ele descobriu que, após a derrota da Hungria em sua guerra
de independência contra os austríacos, em 1848-49, muitos entre
os patriotas que se refugiaram na
Itália foram parar na África
oriental, onde se estabeleceram e
legaram aos descendentes seus sobrenomes.
Nem foi somente até a Etiópia
que chegaram os patriotas de
1848-49. Dois irmãos judeus que
deixaram a Hungria nesses anos
conturbados acabaram desembarcando no Brasil. Chapeleiros
de profissão, um se mudou para o
Nordeste, enquanto o outro se
tornou o fornecedor oficial da
corte imperial. Durante nosso Segundo Império, um ramo da família estabeleceu-se no Rio Grande do Sul e entre seus netos ou bisnetos encontra-se o poeta simbolista gaúcho Alceu Wamosy
(1895-1923). O ex-prefeito de Salvador Mario Kertész, o ministro
francês do Interior, Nicholas Sarkozy, e o governador do Estado de
Nova York, George Pataki, têm
nomes húngaros (Kertész significa "jardineiro" e Pataki, "ribeiro"; Sarkozy é um topônimo). E
Edward Teller, o físico nuclear,
pai da bomba de hidrogênio, que
morreu nonagenário há poucas
semanas, nascera na Hungria.
Mas a proliferação de conterrâneos e seus descendentes, fazendo,
às vezes, fama e fortuna no exterior (Arthur Koestler, Zsa Zsa Gábor, Michael Curtiss, o diretor de
"Casablanca ", George Soros etc.)
não havia sido o bastante para
habituar os magiares (que é como
eles se autodenominam) à presença de estrangeiros (exceto os
das nações vizinhas), falando sua
língua, em Budapeste. País naturalmente insular devido à sua localização, a Hungria se mantivera, devido ao isolacionismo soviético, tão refratária à globalização
que, até 1989, dificilmente se conseguia comer decentemente ali
um prato que não tivesse raízes
locais.
Algo que seguramente contribuiu para tal isolamento deve ter
sido a singularidade da própria
língua, que, sem parentesco entre
as demais da região, viera com as
tribos nômades, que, nos séculos 8
e 9, ocuparam a bacia do Danúbio. Essas tribos pertenciam a um
fluxo contínuo de migrantes que,
durante milênios, deixaram a
Ásia rumo à Europa. Sua origem,
no entanto, permaneceu enigmática até o século 19. Os húngaros a
haviam atribuído aos hunos (um
povo sobre o qual pouco se sabe),
aos turcos e seus parentes e mesmo aos sumérios.
Foi precisamente esse mistério
que lançou as bases do orientalismo científico húngaro, um dos
grandes e menos conhecidos projetos intelectuais europeus, que,
retomado a cada geração, chegou
a nossos dias. Seu pioneiro, Sándor Csoma Körösi (1784-1842),
tendo estudado várias línguas
ocidentais, além do árabe e do
turco, deixou, em 1819, sua terra
e, quase sem dinheiro, fazendo
boa parte do trajeto a pé, alcançou, quatro anos mais tarde, o Himalaia. Convencido de que sua
língua se relacionava com o tibetano, ele se instalou durante anos
num mosteiro, de onde saiu somente depois de ter dominado a
língua e elaborado o primeiro dicionário tibetano-inglês.
Infelizmente para Körösi, o
húngaro nada tem a ver com o tibetano, e todo o trabalho não o
havia aproximado das raízes de
seu povo. Quando morreu, doente
e exausto, sua intenção era a de
explorar o Turquestão chinês:
mais uma falsa pista. No entretempo, outros orientalistas de um
país que não só não tinha veleidades coloniais como era ele mesmo uma espécie de colônia percorreram a Ásia central e descobriram, entre os povos urálicos da
Sibéria, ao norte da China, os parentes, perdidos há milênios, de
sua família linguística.
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