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São Paulo, segunda-feira, 06 de outubro de 2003

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NELSON ASCHER

Ao Oriente do Oriente

Quando, em 1954, meus pais, nascidos na Hungria, estavam a caminho do Brasil, seu navio parou por um ou dois dias em Dacar, no Senegal. Tão logo desembarcaram, foram cercados por garotos, todos vendendo algum tipo de objeto artesanal. Interessando-se por uma faca esculpida em madeira, mas com a memória já devidamente distanciada das aulas de geografia em suas respectivas escolas, eles perguntaram um ao outro qual seria a língua em que deveriam negociar com o vendedor. E este lhes respondeu no idioma deles: "Podemos tratar disso em húngaro".
Habitantes que somos de uma nação de imigrantes, nós, brasileiros, estamos mais do que habituados não só a ouvir o português falado com todos os possíveis e impossíveis sotaques como tampouco nos surpreende que ele seja usado por gente de qualquer etnia ou origem. Se isso vale para algumas línguas, como o inglês, o espanhol ou o francês, antes dos anos 60 ainda não se esperava que um vietnamita desatasse a conversar em sueco, um indiano em lituano ou um senegalês em húngaro. Sobretudo em Dacar.
Os idiomas mencionados, bem como o tcheco e o eslovaco, o servo-croata, o esloveno, o búlgaro, o romeno e o danês etc., eram e, até certo ponto seguem sendo, considerados segredos de família. Se há, por um lado, línguas imperiais, que, primeiro, se expandiram mundo afora e, depois, passaram a acolher em casa seus ex-súditos coloniais, existem outras que, confinadas a um determinado nicho ecológico, pertencem preponderantemente aos falantes nativos.
O vendedor senegalês hungarófono cuja faca, arrematada a bom preço, atualmente me pertence tinha, é claro, uma história. Desde que ficara órfão, havia sido criado numa missão local -creio que de dominicanos húngaros. Singularidades individuais ou históricas semelhantes elucidam, por exemplo, o caso relatado por um diplomata húngaro que, tão logo seu país abriu uma embaixada em Adis Abeba depois da Segunda Guerra, foi visitado por etíopes típicos portadores de nomes atípicos como Abdula Szabó ou Mustafá Kovács (Szabó e Kovács são alfaiate e ferreiro em húngaro). Investigando o mistério, ele descobriu que, após a derrota da Hungria em sua guerra de independência contra os austríacos, em 1848-49, muitos entre os patriotas que se refugiaram na Itália foram parar na África oriental, onde se estabeleceram e legaram aos descendentes seus sobrenomes.
Nem foi somente até a Etiópia que chegaram os patriotas de 1848-49. Dois irmãos judeus que deixaram a Hungria nesses anos conturbados acabaram desembarcando no Brasil. Chapeleiros de profissão, um se mudou para o Nordeste, enquanto o outro se tornou o fornecedor oficial da corte imperial. Durante nosso Segundo Império, um ramo da família estabeleceu-se no Rio Grande do Sul e entre seus netos ou bisnetos encontra-se o poeta simbolista gaúcho Alceu Wamosy (1895-1923). O ex-prefeito de Salvador Mario Kertész, o ministro francês do Interior, Nicholas Sarkozy, e o governador do Estado de Nova York, George Pataki, têm nomes húngaros (Kertész significa "jardineiro" e Pataki, "ribeiro"; Sarkozy é um topônimo). E Edward Teller, o físico nuclear, pai da bomba de hidrogênio, que morreu nonagenário há poucas semanas, nascera na Hungria.
Mas a proliferação de conterrâneos e seus descendentes, fazendo, às vezes, fama e fortuna no exterior (Arthur Koestler, Zsa Zsa Gábor, Michael Curtiss, o diretor de "Casablanca ", George Soros etc.) não havia sido o bastante para habituar os magiares (que é como eles se autodenominam) à presença de estrangeiros (exceto os das nações vizinhas), falando sua língua, em Budapeste. País naturalmente insular devido à sua localização, a Hungria se mantivera, devido ao isolacionismo soviético, tão refratária à globalização que, até 1989, dificilmente se conseguia comer decentemente ali um prato que não tivesse raízes locais.
Algo que seguramente contribuiu para tal isolamento deve ter sido a singularidade da própria língua, que, sem parentesco entre as demais da região, viera com as tribos nômades, que, nos séculos 8 e 9, ocuparam a bacia do Danúbio. Essas tribos pertenciam a um fluxo contínuo de migrantes que, durante milênios, deixaram a Ásia rumo à Europa. Sua origem, no entanto, permaneceu enigmática até o século 19. Os húngaros a haviam atribuído aos hunos (um povo sobre o qual pouco se sabe), aos turcos e seus parentes e mesmo aos sumérios.
Foi precisamente esse mistério que lançou as bases do orientalismo científico húngaro, um dos grandes e menos conhecidos projetos intelectuais europeus, que, retomado a cada geração, chegou a nossos dias. Seu pioneiro, Sándor Csoma Körösi (1784-1842), tendo estudado várias línguas ocidentais, além do árabe e do turco, deixou, em 1819, sua terra e, quase sem dinheiro, fazendo boa parte do trajeto a pé, alcançou, quatro anos mais tarde, o Himalaia. Convencido de que sua língua se relacionava com o tibetano, ele se instalou durante anos num mosteiro, de onde saiu somente depois de ter dominado a língua e elaborado o primeiro dicionário tibetano-inglês.
Infelizmente para Körösi, o húngaro nada tem a ver com o tibetano, e todo o trabalho não o havia aproximado das raízes de seu povo. Quando morreu, doente e exausto, sua intenção era a de explorar o Turquestão chinês: mais uma falsa pista. No entretempo, outros orientalistas de um país que não só não tinha veleidades coloniais como era ele mesmo uma espécie de colônia percorreram a Ásia central e descobriram, entre os povos urálicos da Sibéria, ao norte da China, os parentes, perdidos há milênios, de sua família linguística.


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