São Paulo, quarta-feira, 06 de outubro de 2004

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O gênio da garrafa

Renato Stockler/Folha Imagem
A partir da esq., Mário Bortolotto, Joca Terron, Índigo, Ronaldo Bressane, Nelson de Oliveira, Andréa del Fuego, Xico Sá, José Bombig, Marcos Benuthe, Marcelino Freire, Ivana Leite e Chico Mattoso


Antologia reúne contos de 17 jovens escritores ambientados em um bar da Vila Madalena

CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL

O verdadeiro gênio da garrafa não é aquele grandão, rabinho de cavalo e cavanhaque, que aparece no meio da fumaça oferecendo três pedidos. Ele tem pouco mais de 1,60 m, pele azeitona-escura e, geografias à parte, nasceu no Piauí, mas atende por França; não promete iates, mulheres, dinheiro, mas é imediato com as cervejas geladas e os amendoins.
Garçom de um bar da Vila Madalena, França é uma espécie de "muso inspirador" de uma coletânea de contos de jovens escritores de destaque, livro que será lançado esta noite no habitat de trabalho do "gênio da garrafa".
O nome do livro referenda a habilidade do "maître" com os engradados -ao menos com um punhado de autores de alto teor alcoólico. "Uma Antologia Bêbada - Fábulas da Mercearia", volume organizado por Joca Reiners Terron, reúne 17 narrativas "etílicas" feitas por escribas que batem cartão na Mercearia São Pedro, um dos bares mais tradicionais e sui generis do bairro boêmio paulistano (leia texto abaixo).
São histórias de bêbados e cachorros, de garrafas e paixões, de escritores e garçons, a maior parte delas ambientadas nos limites do estabelecimento da rua Rodésia.
Projeto de um dos donos e "secretário de Cultura" do bar, Marcos Benuthe, que pretendia "selar casamento" com a clientela literata do espaço, o livro organizado por Terron aglutinou um grupo de escritores com trajetórias bem diferentes, mas com boa quilometragem coletiva nas mesas gerenciadas por França.
Entre os autores de "Uma Antologia Bêbada", estão desde Reinaldo Moraes, 54, que estreou com barulho na literatura (e na Mercearia) em 1981, com o romance beat "Tanto Faz" (recém-relançado pela editora Azougue), até Chico Mattoso, que tinha nessa época três anos de idade.
Os dois "extremos" são extremos literários da antologia em dois sentidos. Mattoso, autor de um dos contos de "Parati para Mim" (Planeta), mas sem livro individual, assina "Num Galho Muito Alto", uma das menores histórias do volume. E uma das mais líricas delas. É de Moraes, por sua vez, a história mais "desbragada" e longilínea.
"Eu pedi a todos um texto de 5.000 caracteres para ser entregue em um prazo "x". O dia chegou, e Reinaldo me pediu mais uma semana e um pouco mais espaço. Depois mais uma semana e mais espaço. Acabou com 65 mil caracteres. Estava tão bom que demos um jeito de encaixar."
"Privada", dez vezes maior do que outros contos do livro, é uma história narrada por uma moça enojada e apaixonada por um sujeito "ratazana" chamado Cardan (por sinal personagem roubado de outro escritor da coletânea, o dramaturgo Mario Bortolotto).
Se Moraes usou a mocinha Bia como narradora, a maior parte dos autores de "Uma Antologia Bêbada" aposta em relatos em primeira pessoa, confessionais, com narradores autobiográficos.
No engradado das exceções está o conto em terceira pessoa escrito pelo organizador da coletânea, uma série de pequenos relatos mezzo-verdadeiros, mezzo-ficcionais, que partem da premissa de que pouco depois de fazer seu último furto, o ladrão ítalo-paulistano Gino Meneghetti (morto em 1976) passou na Mercearia para beber seu último trago.
Terron, 36, autor de um romance, uma novela e volumes de contos e poesia, além de "one man show" da micro-editora Ciência do Acidente (que edita o livro), narra que o banquinho usado pelo ladrão nesse dia, até hoje encostado no balcão que sustenta potes de amendoins e favas, faz quem nele sentar passar "ao lado de lá".
A veia cômica, com seus vários afluentes, percorre quase todos os contos. Antonio Prata, 27, por exemplo, faz um remake do conto "Aleph", de Borges, e coloca Marcos "Marquinhos" Benuthe como o homem que viu o Aleph, "um dos pontos do espaço que contém todos os pontos", em um lugarejo atrás da estante de detergentes (a Mercearia, explica-se abaixo, vende desde produtos de limpeza até livros, ou "é o único estabelecimento que vende Proust, Diabo Verde e carne seca na mesma caixa", na expressão de Prata).
Xico Sá (crítico da Folha) evoca, também na clave do riso, outro gigante literário, Jack London. John Barleycorne, personagem de "Memórias Alcoólicas" do escritor, dialoga na Mercearia com o Todo-Poderoso no conto "Deus, os Cachorros e os Homens".
Nos demais contos, todos feitos para a antologia (com exceção de "O Frio, o Calor e o Assédio Sexual", de Mathew Shirts, já publicado no jornal "O Estado de S. Paulo", de onde o jornalista é colunista), os protagonistas são quase sempre o "staff" da Mercearia e seus autores pinguços.
Pinguços? Nem todos. Nelson de Oliveira, organizador das antologias "Geração 90" (cujos autores são maioria no presente livro), é apresentado como "abstêmio".
Eis aí uma tarefa para o "gênio da garrafa" França: pode reservar uns guaranás para esta noite.


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