São Paulo, sábado, 06 de novembro de 2004

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RODAPÉ

Bastidores da invenção

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

No prefácio a "Dez Conversas", de Fabrício Marques, o escritor Joca Reiners Terron cita um comentário de Augusto Monterroso, para quem a entrevista seria "o único gênero inventado pela modernidade". A frase ironiza a suposta falta de inventividade do século que pretendeu revolucionar todas as linguagens. Se levada ao pé da letra, porém, revela um aspecto crucial da arte moderna: é difícil desvincular a obra de um escritor das propostas estéticas e comentários que ele vai semeando à margem de seus livros, em depoimentos e entrevistas.
Por isso, um livro que, como diz o subtítulo, traz "diálogos com poetas contemporâneos" é um instrumento precioso para entender melhor os planos de trabalho, as fontes, as obsessões e, em alguns casos, a distância entre intenção e realização que há na obra de alguns de nossos poetas.
A seleção dos entrevistados é desigual. Ao lado de nomes como Affonso Ávila, Armando Freitas Filho e Sebastião Uchoa Leite, que são presença obrigatória em qualquer antologia, estão autores como Edimilson de Almeida Pereira e Ricardo Aleixo (de recepção ainda discreta) e Maria do Carmo Ferreira (que publica desde os anos 60, mas é inédita em livro).
A inclusão, todavia, se justifica pelo fato de serem escritores mineiros e de Marques ter feito as entrevistas, originalmente, para o "Suplemento Literário de Minas Gerais". Completam a lista Chacal, Antonio Risério e o iconoclastas Millôr Fernandes e Sebastião Nunes.
São longos bate-papos que detalham aspectos de cada obra (como o impacto das pesquisas sobre o barroco na poética de Ávila), sem prejuízo do humor (Freitas Filho chamando João Cabral de "caga-regras genial") ou mesmo do mau humor (como os comentários ressentidos de Nunes sobre a crítica, que não combinam com sua "estética da provocação").
O maior valor dessas "Dez Conversas", porém, está nas definições epigramáticas que é possível destilar de cada entrevista -e que aumentam o repertório de definições desse objeto cada vez mais indefinível que é a poesia.
Risério, por exemplo, deduz de seu trabalho com etnopoesia que "assim como a antropologia é uma poética das sociedades, a poesia é uma antropologia do indivíduo".
E Uchoa Leite identifica a abstração poética a uma ética materialista: "Nem só o capitalismo é materialista. Poetas e artistas também podem ser, não é? Sem professarem essa monstruosidade. Sou anticapitalista visceral e sou materialista. Ao mesmo tempo gosto de arte e poesia, "cosa mentale", como dizia Leonardo da Vinci. E aí? É complicado? Mas para mim é simples. Sou ligado à matéria do que faço, e essa matéria é a linguagem".
Alguns desses poetas trabalham e refletem sobre as interfaces da linguagem verbal com códigos visuais. Por isso a leitura de "Dez Conversas" pode ser complementada com outro lançamento sobre os bastidores da invenção: "Ateliês Brasil", do fotógrafo Bruno Giovannetti e da jornalista Leila Kiyomura.
O livro também traz dez depoimentos, todos de artistas plásticos nascidos ou radicados em São Paulo, como Arcângelo Ianelli, Maria Bonomi, Antonio Henrique Amaral, Tikashi Fukushima, Evandro Carlos Jardim, Amélia Toledo e Claudio Tozzi.
As imagens enfocam menos as obras do que o "habitat" que as viu nascerem; as palavras dos artistas se referem à construção do ateliê como extensão de suas telas e esculturas. O ateliê é o "sertão" de Aldemir Martins, uma projeção de seu imaginário; o espaço de trabalho de Tomie Ohtake é um universo curvo que mimetiza as superfícies de seus módulos; e Wesley Duke Lee submerge num "transatlântico" saturado pelo amálgama de orientalismo e pop que salta de suas telas.
Mais do que oficina do artesão, enfim, o ateliê é um laboratório de provas, uma miniatura de como o mundo seria caso fosse criado por artistas -e não por um mau demiurgo.


Dez Conversas
    
Autor: Fabrício Marques
Editora: Gutenberg
Quanto: R$ 28,50 (292 págs.)

Ateliês Brasil
    
Autores: Bruno Giovannetti e Leila Kiyomura
Editora: Empresa das Artes
Quanto: R$ 99 (176 págs.)



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