São Paulo, sábado, 06 de novembro de 2004

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"POETAS FRANCESES DA RENASCENÇA"

Obra resgata frescor de autores clássicos

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Reúnem-se nesta antologia alguns dos mais célebres e bonitos poemas franceses do século 16. O leitor talvez hesite, imaginando um excessivo peso de alusões clássicas e a possível frieza de versos muito burilados, a que náiades, ninfas, éolos e amores acorrem gentilmente. Mas, como sempre acontece quando vencemos o medo e entramos em contato com os grandes autores do passado, surpreende o quanto podem ser encantadores, simples e espontâneos os melhores poemas deste volume.
Dentre os 16 autores escolhidos por Mario Laranjeira nesta antologia, Pierre Ronsard (1524-1585) é certamente o predileto dos leitores de todas as épocas, e não por acaso. Passados vários séculos, ainda não há como resistir, por exemplo, ao célebre soneto em que Ronsard imagina sua amada bem velhinha, de noite, fiando na roca ("Quand vous serez bien vieille, le soir, à la chandelle..").
Cito por inteiro: "Quando fores bem velha, à noite, à luz da vela,/ Sentada ao pé do fogo, e dobando e fiando,/ Dirás, aos versos meus, e te maravilhando: "Ronsard me celebrava ao tempo em que era bela".// Não terás serva então que, a ouvir notícia tal,/ Ao peso do labor meio cochilando,/ Ao meu nome não vá logo se despertando,/Bendizendo o meu nome em louvor imortal.// Eu debaixo da terra, um fantasma sem osso,/ Pela sombra murtosa acharei meu repouso; / Tu, ao pé da lareira, uma velha encolhida,// Vais chorar meu amor e tua soberba vã./ Vive, se me dás fé, não deixes pra amanhã/ Colhe já, sem temor, as rosas desta vida".
Ainda prefiro a tradução de Guilherme de Almeida (que pode ser encontrada no antigo e excelente "Livro de Ouro da Poesia da França" -Ediouro). As duas últimas estrofes são como segue: "Sob a terra eu irei, fantasma silencioso,/ Entre as sombras sem fim procurando repouso:/ E em tua casa irás, velhinha combalida,// Chorando o meu amor e o cruel desdém./Vive sem esperar pelo dia que vem;/ Colhe hoje, desde já, colhe as rosas da vida".
O mesmo efeito melodioso das palavras suspensas entre vírgulas é todavia alcançado por Mario Laranjeira na tradução de outro poema famoso de Ronsard: "Comme on voit sur la branche, au mois de mai, la rose...", que ficou assim em português: "Como se vê no ramo, em pleno maio, a rosa...". O verso parece ondular também, e nada se perde em português da delicadeza desse poema, em que Ronsard leva ao túmulo de uma moça, morta em sua "primeira e jovem novidade", uma oferenda singela e pura: nada mais que "este vaso de leite, este cesto de flores".
Quantas rosas, flores e amores nesses poemas! Em vez de parecerem gastas e convencionais, nas mãos de autores como Ronsard, Du Bellay, Marot ou Malherbe essas coisas surgem também em sua "primeira e jovem novidade", com um frescor que, felizmente, não morre nem um pouco nesta tradução. Esses autores consolidaram a tradição poética francesa; e talvez o maior encanto da Renascença literária seja o tom quase rústico com que as culturas nacionais ainda adolescentes iam se apropriando da prestigiosa herança clássica, colorindo-a de modesta e provinciana graça.
O volume, infelizmente curto, tem também o mérito de trazer para o leitor brasileiro nomes bem menos conhecidos da Renascença francesa: do cruel e divertido Guillaume Bouchet (1526-1606) à suave Pernette du Guillet (1520?-1545), sem contar Maurice Scève (o "Mallarmé do século 16", diz o romancista Tommaso di Lampedusa) e a apaixonante Louise Labé, (1525-1565), a quem Felipe Fortuna já havia dedicado notável volume de traduções pela editora Siciliano. Termino com um soneto dela, na tradução de Mario Laranjeira:
"Ó belos olhos, brunos, desviados,/ Ó quentes ais, ó lágrimas vertidas,/Ó negras noites a esperar perdidas,/ Ó dias claros sem razão tornados!//Ó tristes prantos, votos obstinados,/ Ó penas gastas, horas despendidas,/Ó mortes mil em mil redes tendidas,/ Ó rudes males contra mim fadados!// Ó risos, frontes, braços, mãos ardentes!/ Ó alaúde, viola e voz plangentes! Tanto archote a abrasar uma mulher!// De ti me queixo: tendo eu fogo tanto,/ Meu coração apalpas e, no entanto,/ Sobre ti não voou chispa sequer".
Que os leitores brasileiros não deixem esses apelos sem resposta.


Poetas Franceses da Renascença
    
Autores: Pierre Ronsard e Clément Marot, entre outros
Organização e tradução: Mário Laranjeira
Editora: Martins Fontes
Quanto: R$ 24,50 (136 págs.)



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