São Paulo, segunda-feira, 06 de novembro de 2006

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NELSON ASCHER

Cérebro e músculos


Temos na educação a única panacéia desprovida da menor contra-indicação?

NÃO É necessário ter merecido um diploma de medicina, nem sequer, como este humilde escriba, haver rastejado durante um semestre interminável pelos corredores da escola que o concede, rastejado em busca da saída, bem entendido, assistindo, no entretempo, a autópsias no IML para saber que o tecido do qual o cérebro se compõe não é exatamente o mesmo que forma os músculos.
Eles se revelam substancialmente distintos inclusive ao olhar distraído do leigo e, quando elevados ou rebaixados ao estatuto de metáfora (por exemplo, a que remete à força da razão e à razão da força) apta a ser incluída em alguma frase de efeito, são, com freqüência, contrapostos, como se a composição, o funcionamento e, sobretudo, a função de cada qual fosse o avesso da de seu rival complementar.
E, no entanto, caso ponhamos temporariamente de lado os rigores da biologia, constataremos que semelhanças entre ambos não faltam. Mais precisamente: há (ou deveria haver) muito de muscular na tal da massa encefálica. Embora, com razão, se pense que poetas, escritores e intelectuais em geral raramente mantêm em forma seus músculos, pois (e aqui as razões principiam a rarear) estariam de preferência investindo as calorias consumidas no respectivo cérebro que, quando adequadamente acionado, alimenta-se de quantidades desproporcionais de energia, o fato é que, ao longo da vida, o sistema nervoso central se comporta de maneira bastante semelhante.
A estrutura muscular de um ser humano cresce e evolui até certa idade e, depois, para que continue em forma, requer exercícios e disciplina. O mesmo vale para o cérebro. E, assim como a prática de um esporte qualquer envolve exercícios que, aparentemente, nada têm a ver com aquilo para o que o atleta se prepara, uma forma útil (mais, aliás, do que as corriqueiramente encontradas no mercado de idéias) de entender a educação seria através de paralelos com as demais atividades físicas.
Outrora, a denominação genérica dada, na rede escolar, à prática sistemática e obrigatória de esportes era "educação física". Pois bem: eis aqui um conceito que valeria a pena transpor, para além do metafórico, a tudo o que as instituições generosamente caracterizadas como educativas fazem ou tentam fazer com os cérebros ainda em formação.
A educação, como tal, é algo (uma entidade? meta? ideal? aspiração?) que, por mais discutida e incessantemente definida e redefinida, nunca parece se acomodar com facilidade ao âmbito de termos que sejam, a um tempo, poucos e transparentes. Quanto mais se confia na sua importância cada vez mais indiscutível, menos se sabe o que ela é, para que serve, como deveria ser conduzida. A respeito de um de seus aspectos centrais, porém, não existe dúvida: a maioria, talvez até a unanimidade, dos membros de nossa civilização se inclina a apreciá-la como algo sacrossanto, um bem social do qual sempre conviria ter um estoque maior. Tal ou qual tipo de educação são submetidos ao escrutínio cético, mas sua desejabilidade sob alguma forma (mesmo que por descobrir) está fora de questão.
Daí que ela, nas sociedades que se considerem minimamente civilizadas, tenha se tornado obrigatória. Qualquer escola, reza o consenso (já, pelo menos, duplamente secular), é melhor do que nenhuma escola, qualquer professor do que nenhum professor, qualquer aula do que nenhuma e assim por diante. Mas será isso mesmo? Temos na educação a única panacéia desprovida da menor contra-indicação, do mais ínfimo óbice ou empecilho? Caso a abordemos, porém, segundo o paralelo traçado com a educação física, este, por sua vez, enriquecido pelo acúmulo de informações de que o público hoje em dia dispõe, talvez o resultado que apareça nos conduza, se não ao susto, a alguma espécie de reconsideração.
Exemplos de atividades físicas que (apesar das melhores intenções) causam males patentes à musculatura e, se praticados demasiado precocemente, problemas sérios de saúde também não são escassos. Fosse objetivo primordial da educação pôr o cérebro de suas cobaias compulsórias tão em forma como se busca fazer com o corpo através de exercícios que o preparam corretamente para algum esporte, não seria impossível concluir que muito do que passa por educação parece acarretar mais prejuízo aos futuros adultos do que sua ausência pura e simples conseguiria fazer. Mas, antes que se questione a positividade apriorística do processo todo, sua virtuosidade despida de qualquer senão, dificilmente será possível sequer principiar a compreender quanto dano desnecessário (e sempre com as melhores intenções) talvez esteja sendo causado.


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