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NELSON ASCHER
Cérebro e músculos
Temos na educação a
única panacéia
desprovida da menor
contra-indicação?
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NÃO É necessário ter merecido
um diploma de medicina,
nem sequer, como este humilde escriba, haver rastejado durante um semestre interminável pelos corredores da escola que o concede, rastejado em busca da saída, bem entendido, assistindo, no entretempo, a autópsias no IML para
saber que o tecido do qual o cérebro
se compõe não é exatamente o mesmo que forma os músculos.
Eles se revelam substancialmente distintos
inclusive ao olhar distraído do leigo
e, quando elevados ou rebaixados ao
estatuto de metáfora (por exemplo,
a que remete à força da razão e à razão da força) apta a ser incluída em
alguma frase de efeito, são, com freqüência, contrapostos, como se a
composição, o funcionamento e, sobretudo, a função de cada qual fosse
o avesso da de seu rival complementar.
E, no entanto, caso ponhamos
temporariamente de lado os rigores
da biologia, constataremos que semelhanças entre ambos não faltam.
Mais precisamente: há (ou deveria
haver) muito de muscular na tal da
massa encefálica. Embora, com razão, se pense que poetas, escritores e
intelectuais em geral raramente
mantêm em forma seus músculos,
pois (e aqui as razões principiam a
rarear) estariam de preferência investindo as calorias consumidas no
respectivo cérebro que, quando adequadamente acionado, alimenta-se
de quantidades desproporcionais de
energia, o fato é que, ao longo da vida, o sistema nervoso central se
comporta de maneira bastante semelhante.
A estrutura muscular de um ser
humano cresce e evolui até certa
idade e, depois, para que continue
em forma, requer exercícios e disciplina. O mesmo vale para o cérebro.
E, assim como a prática de um esporte qualquer envolve exercícios
que, aparentemente, nada têm a ver
com aquilo para o que o atleta se
prepara, uma forma útil (mais, aliás,
do que as corriqueiramente encontradas no mercado de idéias) de entender a educação seria através de
paralelos com as demais atividades
físicas.
Outrora, a denominação genérica
dada, na rede escolar, à prática sistemática e obrigatória de esportes era
"educação física". Pois bem: eis aqui
um conceito que valeria a pena
transpor, para além do metafórico, a
tudo o que as instituições generosamente caracterizadas como educativas fazem ou tentam fazer com os
cérebros ainda em formação.
A educação, como tal, é algo (uma
entidade? meta? ideal? aspiração?)
que, por mais discutida e incessantemente definida e redefinida, nunca parece se acomodar com facilidade ao âmbito de termos que sejam, a
um tempo, poucos e transparentes.
Quanto mais se confia na sua importância cada vez mais indiscutível,
menos se sabe o que ela é, para que
serve, como deveria ser conduzida.
A respeito de um de seus aspectos
centrais, porém, não existe dúvida: a
maioria, talvez até a unanimidade,
dos membros de nossa civilização se
inclina a apreciá-la como algo sacrossanto, um bem social do qual
sempre conviria ter um estoque
maior. Tal ou qual tipo de educação
são submetidos ao escrutínio cético,
mas sua desejabilidade sob alguma
forma (mesmo que por descobrir)
está fora de questão.
Daí que ela, nas sociedades que se
considerem minimamente civilizadas, tenha se tornado obrigatória.
Qualquer escola, reza o consenso (já,
pelo menos, duplamente secular), é
melhor do que nenhuma escola,
qualquer professor do que nenhum
professor, qualquer aula do que nenhuma e assim por diante. Mas será
isso mesmo? Temos na educação a
única panacéia desprovida da menor contra-indicação, do mais ínfimo óbice ou empecilho? Caso a
abordemos, porém, segundo o paralelo traçado com a educação física,
este, por sua vez, enriquecido pelo
acúmulo de informações de que o
público hoje em dia dispõe, talvez o
resultado que apareça nos conduza,
se não ao susto, a alguma espécie de
reconsideração.
Exemplos de atividades físicas
que (apesar das melhores intenções) causam males patentes à musculatura e, se praticados demasiado
precocemente, problemas sérios de
saúde também não são escassos.
Fosse objetivo primordial da educação pôr o cérebro de suas cobaias
compulsórias tão em forma como se
busca fazer com o corpo através de
exercícios que o preparam corretamente para algum esporte, não seria
impossível concluir que muito do
que passa por educação parece acarretar mais prejuízo aos futuros adultos do que sua ausência pura e simples conseguiria fazer. Mas, antes
que se questione a positividade
apriorística do processo todo, sua
virtuosidade despida de qualquer
senão, dificilmente será possível sequer principiar a compreender
quanto dano desnecessário (e sempre com as melhores intenções) talvez esteja sendo causado.
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