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BERNARDO CARVALHO
Fracasso do pensamento
Num mundo em que o jornalismo substitui a filosofia, é lógico que o bom senso não tem vez
UM MUNDO sem reflexão, onde
a violência da realidade obriga o sujeito a deixar de pensar para agir, cedendo ao senso comum, ao simplismo e ao pragmatismo cínico, recorrendo ao preconceito e a ações impensadas que antes
ele condenava, quando essa mesma
realidade ainda não o atingia diretamente e ele podia repetir belas teorias da boca para fora, não é um
mundo menos hipócrita (como alguns gostariam), é um mundo pior.
Um mundo sem arte (no qual a arte,
aceitando a pecha de ilusão e perfumaria, cede ao consenso da realidade e passa a funcionar como jornalismo e sociologia) também.
É nesse mundo desiludido que a
representação de jovens tolos e inconseqüentes, repetindo Foucault
da boca para fora, para acabar quebrando a cara na prática contraditória do trato direto com a realidade
nua e crua, passa a ter um efeito catártico junto a platéias em busca de
um bode expiatório.
É desse mundo (o do fracasso do
pensamento) que trata "Tropa de
Elite": onde só é permitido escapar à
violência (e deixar de ser violento)
fora da realidade -tudo o que o capitão Nascimento quer, ou diz querer,
é sair desse mundo (onde quem pára
para pensar morre), para poder cuidar em paz do filho e da família.
Gostei do filme, embora tivesse
preferido o longa-metragem anterior de José Padilha, o documentário "Ônibus 174". Não acho o filme
fascista. Mas é inegável que, como
qualquer representação da realidade, ele tem um discurso (que não é
exatamente o mesmo do capitão
Nascimento), a despeito de dizer
que se limita a mostrar a realidade. E
não é um discurso novo. É o discurso
de um realismo funcional que volta
e meia reaparece para dizer que a
realidade é o que é. E que só os fatos
(ali representados) contam.
Num mundo em que o jornalismo
substitui a filosofia (e em que a arte
se esconde como discurso para se
apresentar como espelho de uma
realidade unívoca), é lógico que o
bom senso não tem vez. A demagogia e a ira, sim. É preto no branco.
Produção de subjetividade é coisa de
elite irresponsável. Aqui, nós tratamos de fatos objetivos.
Com o desbaratamento das idéias,
este passa a ser um mundo de polarizações em torno de questões simplistas e indiscutíveis. Não se produz pensamento; tomam-se partidos. Vozes da ponderação e do conhecimento de causa -como a de
Alba Zaluar, que exercita o bom senso semanalmente e sem maiores
alardes nas páginas deste jornal-
vão se tornando inaudíveis em meio
ao bruaá dos lugares-comuns estridentes. O bom senso não aparece,
porque não tem graça nem dá manchete. As idéias foram reduzidas a
representações sociais. Basta que
cada um fale e seja reconhecido como representante do seu grupo social (e que muitas vezes se aproveite
disso para respaldar a banalidade ou
a demagogia do que diz). O que conta não é o teor das idéias (em geral,
as mais simplistas), mas que sirvam
para identificar o lugar social de
quem as manifesta no campo de batalha. Essa aparente desordem apenas encobre uma ordem geral, o
consenso em torno da realidade como um campo de forças autônomo,
um teatro de ação e reação, imune à
reflexão e à inteligência.
Foi em meio a esse contexto que
bati com os olhos na recém-publicada edição espanhola dos artigos e
palestras do dramaturgo francês
Enzo Cormann: "Para que Serve o
Teatro?" (Universidade de Valência). Na conferência de 2001 que dá
título à coletânea, o autor diz que o
teatro (e de resto toda arte que se
preze), por ser reflexão, "consiste
em reinjetar subjetividade num corpo social entrevado pelo uniforme
demasiado estreito do pragmatismo
econômico" -ou (por que não?) do
realismo oportunista que reivindica
para si uma pretensa objetividade,
condenando ao mesmo tempo toda
produção subjetiva à impotência e
ao ridículo, como se dela não fizesse
parte.
Em nome de uma representação
unívoca da realidade, o discurso embutido em "Tropa de Elite" (que não
se assume como discurso) limita a
própria possibilidade de produção
de subjetividade a quem está fora
desse mundo, ao diletantismo ridicularizado de estudantes inconseqüentes. Ao associar a produção de
subjetividade aos ricos, aos tolos e
aos irresponsáveis, como se tampouco estivesse produzindo subjetividade, o filme acaba, provavelmente sem perceber, dando um tiro no
próprio pé, pois contribui para estreitar o entendimento do que num
passado não muito remoto, e graças
ao esforço e à resistência de grandes
cineastas, garantiu ao cinema um lugar entre as artes, justamente como
produção de subjetividade.
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