São Paulo, sexta, 6 de novembro de 1998

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CRÍTICA
Artista não quer entender, só liquidificar

do enviado ao Rio

Esse Beck é um sujeito esquizofrênico. Tem a mania (obsessão?) de provar de CD a CD que possui várias -múltiplas- personalidades musicais. E que, apesar disso, é um sujeito só por trás de todas elas.
Assim, quando surgiu, em 94, com "Mellow Gold", era o eletrificador do folk, a reprocessar formas musicais tradicionais em hip hop, em sons próprios dos 90.
Como ainda não era ninguém, pôde de início lançar discos paralelos em esquema independente, e aí passou a exercitar as mudas de personalidade.
Em "One Foot in the Grave" (94), despiu-se da casca moderna e fez-se cantor de country e blues, só. Em "Stereopathetic Soulmanure", do mesmo ano, virou o bicho experimental, ensurdecedor, inaudível de tão antimusical.
Aí era hora de voltar a brincar de pop star, e "Odelay" (96) anarquizou o pop e eletronizou o elétrico -e deu ao jovem Beck fama e fortuna planetárias.
"Mutations", o novo, era para ser outro "indie", mas é claro que sua gravadora não quis abrir mão do filãozinho de ouro. Deu abrigo aos caprichos do mocinho, e o mocinho entregou um disco correto e bem-comportado.
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Coisa de mané
Aqui, virou "todos-os-Becks", quase um crooner de boate, disposto a cantar -brilhantemente- de tudo, de rhythm'n'blues ("Cold Brains") a valsa ("O Maria") a country ("Cancelled Check") a tema de igreja ("We Live Again") a bossa ("Tropicalia").
Espera aí, isso é com a gente. Então o mocinho gosta de MPB? Então a bossa nova se chama "Tropicalia"? Claro que ele vai dizer que veio para confundir, que sabe distinguir alhos de bugalhos, mas sua esperta investida na MPB, via troca de bebês, é, sim, coisa de mané.
A letra de "Tropicalia" romantiza (falando de guitarras quebradas, turistas, danças de réptil, confetes, máscaras e canções de funeral) o movimento sessentista, servindo-se de cuícas e da bossa do crioulo doido em que Sergio Mendes e seu Brasil 66 transformaram "Mas Que Nada", de Jorge Ben (de quem Beck é fã assumido).
A intenção é ser esperto e blasé, centrifugando estilos e embaralhando conceitos. Mas é mané, adoravelmente mané.
Fora isso, tudo em "Mutations" soa californiano, sem sê-lo. Seco, o CD é -embora não seja organicamente- psicodélico. Comparece a mesma falta de critério: é psicodélico do tipo californiano como foram Love, Byrds, Jimi Hendrix, Jefferson Airplane, Doors, até o soul branco de Van Morrison.
Não há qualquer distinção. A ele não importa que o Love (banda que guarda parentesco estranho com nossos Mutantes, que Beck parece também admirar) tenha sido luminoso e os Doors, simplesmente messiânicos. O garoto não quer entender, só liquidificar.
Quem faz toda essa confusão é, ainda assim, um dos mais inventivos artistas surgidos nos anos 90. "Mutations" não deixa de ser, nesse sentido, bastante ousado, por inverter e frustrar expectativas. Há algo mais a dizer de um disco pop cuja faixa mais elaborada ("O Maria") parece uma valsinha? Assim é esse Beck.
(PEDRO ALEXANDRE SANCHES) ²
Disco: Mutations Artista: Beck Lançamento: Universal Quanto: R$ 18, em média


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