São Paulo, sexta, 6 de novembro de 1998

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Antropofagia ao alcance de todos

CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial Ontem, na crônica da página 1-2 da Folha, sem fazer o elogio da antropofagia (que já fora feito pelos modernistas de 22), salientei que a idéia não deve ser de todo desprezada, máxime em tempos de recessão, quando há ameaça de colapso no mercado de proteínas e sais minerais na alimentação do brasileiro.
No texto de ontem, falei conceitualmente, sem descer a pormenores. Prometi que daria algumas receitas no melhor estilo desses mestres de forno e fogão que aparecem na TV e ocupam o generoso espaço das seções especializadas de jornais e revistas.
Para início do serviço, devo lembrar que obedecer fielmente às receitas é apenas parte do sucesso, seja ou não da culinária antropofágica. Importância igual ou maior deve ser dada à qualidade dos ingredientes, incluindo a boa procedência dos mesmos. Feito isso, passemos ao serviço propriamente dito:
"Escoteiro à la Reine" (ou "lobinho ao primo canto") - Pegue um escoteiro bem lavado, desosse-o com cuidado para não romper os músculos. Grelhe em fogo lento e sirva com molho de madeira. Prato sumamente eficaz para chefes de partidos políticos, presidentes de escola de samba e analistas de sistema.
"Ensaísta a Saint-Beuve" - Corte um ensaísta literário em pequeninas fatias. Unte-as com manteiga e leve ao forno brando com rodelas de cebola. Faça um refogado com bastante pimenta, meta tudo numa caçarola. Deixe ferver por 45 minutos. Guarnição de beterrabas e cenouras. Acompanha vinho tinto. Recomenda-se cuidado na escolha do ensaísta. Os melhores são aqueles que só publicaram dois ensaios. Ensaísta que já escreveu 20 ensaios deve ser intragável. O meio termo é o mais indicado.
"Corcundinha com espinafres" - Apanhe um corcundinha bem-humorado e sem complexos. Lave-o de dentro para fora com limão, deixe-o suar bastante numa panela abafada com alho e óleo. Use espinafres à vontade. O prato é sumamente nutritivo, rico em vitaminas A e B. Indicado para formadores de banda, formadores de opinião e informadores meteorológicos.
"Coxinha de marqueteiro em campanha" - Procure um marqueteiro bem-produzido em roupas e vocabulário. Retire as coxas com cuidado, aproveitando as tíbias e o fêmur. Faça o recheio aproveitando pedaços do fígado e dos rins. Leve à frigideira com banha bem quente. O segredo do prato está na procura do espécime. Evite os relações-públicas e os picaretas. Para saber se é um bom marqueteiro, faça um teste preliminar. Se ele for incapaz de provar que o Montenegro do Ibope errou mesmo, pode jogar fora.
"Ratinho à moda" - Apanhe o Ratinho às 16h. Não o lave, a fim de não tirar o gosto de Ratinho. Dê-lhe bastante cachaça para que a carne amoleça. Mate-o com cuidado, antes que o bispo Macedo apareça e atrapalhe o festim. Separe as vísceras para posterior farofa e coloque o resto em vinha d'alho com bastante pimenta-do-reino e cuminho. Assar em boa assadeira de barro, lentamente, virando os lados. Sirva-o inteiro, com um ovo cozido na boca e rodelinhas de limão espetadas pelo corpo. Vinho sauterne. Agora sim convide o bispo Macedo.
"Pernambucano ao tucupi" - Limpe um pernambucano bem gordo, assim como o Jô Soares, e refogue-o com azeite-de-dendê e pimentões vermelhos. Recheio de castanha de caju. Junte o tucupi conforme o costume e deixe que o gosto do tucupi passe para o pernambucano e vice- versa. Acompanha batida de maracujá. Prato especialmente recomendado para rega-bofes e paladares progressistas. Muito apropriado para servir em campanhas eleitorais de candidatos da coligação PFL-PSDB.
"Cômico de TV à mineira" - Passe na máquina de moer duas dúzias de cômicos de TV. Faça um refogado com alhos e bugalhos. Sirva com tutu e couve picadinha. Prato muito bom aos domingos, quando há convidados da zona norte em casa. Tome um alka-seltzer depois.
"Rocamboles de cobradores de prestação" - Reduza os cobradores de prestação a uma pasta informe e forme com ela um rocambole. Jogue tudo no lixo, porque o prato é intragável e só tem o mérito de nos livrar de novas cobranças.
Aí estão as sugestões. Evidente que, em culinária, como em arte em geral e no sexo em particular, a imaginação e o entusiasmo darão a justa medida na produção, preparo e apresentação das iguarias acima indicadas. Procure o auxílio de sua mulher. Ela saberá aconselhar um tempero circunstancial, além de esclarecer sobre um ou outro ponto obscuro.
Se há visitas imprevistas, convidados não-convidados que soem aparecer quando caprichamos no preparo do bródio caseiro, há sempre o recurso de uma salada com meninos prodígios, servida fria com maionese, artistas performáticos em espetinhos grelhados e o recurso desesperado de aumentar o "cozido de colunistas sem assunto", servido com molho de alcaparra.
Todos os pratos recomendados são carminativos, de fácil digestão e insignificante taxa de colesterol. Lactentes, velhos e senhoras grávidas podem abusar.



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