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CRÍTICA
Autor ganha fama ao retratar dia-a-dia da guerra em diário on-line
DA REPORTAGEM LOCAL
Às 5h35 do dia 20 de março
(23h35 de 19 de março em
Brasília), os primeiros Tomahawks lançados pelos navios norte-americanos ancorados no golfo Pérsico e no mar Vermelho
atingiram o complexo presidencial de Saddam Hussein em Bagdá, dando início assim à Guerra
do Iraque.
O conflito duraria 43 dias, durante os quais 180 jornalistas estrangeiros permaneceriam na capital iraquiana o tempo todo
-pela primeira vez na história
recente, repórteres ficariam tanto
tempo seguido num fronte.
Menos de 30 minutos depois de
iniciada a guerra, via conexão por
satélite clandestina, a Redação da
Folha em São Paulo recebia os
primeiros textos e fotos do bombardeio -o jornal foi o único órgão de imprensa do Brasil com repórter e repórter fotográfico em
Bagdá durante o conflito.
Pois bem.
Às 5h56 daquela mesma madrugada, portanto menos de 20
minutos depois de deflagrado o
caos, um blog muito particular registrou uma "entrada": "Sirenes
de bombardeio em Bagdá, mas os
únicos sons que dá para ouvir são
as metralhadoras antiaéreas".
(Para os não-iniciados, blog é
abreviatura de "weblog", ou diário da rede, um espaço on-line
que virou coqueluche há dois
anos na internet e pelo qual anônimos fazem na maioria das vezes
diários mas também divulgam informações e idéias. Já "entrada" é
um novo texto colocado no blog.)
Seu autor assinava Salam Pax
("paz" em árabe e latim, respectivamente), se dizia iraquiano e vivendo em Bagdá e mantinha o
blog desde 2002. Com a guerra,
passou de curiosidade de poucos
a fonte fundamental de informação para muitos, não a informação estritamente jornalística, mas
a do dia-a-dia daquele povo invadido, tão em falta na maioria dos
meios naqueles momentos.
Por exemplo, a entrada de sexta,
21 de março: "A noite passada foi
muito quieta em Bagdá. Hoje pela
manhã, saí para comprar pão e
outros comestíveis. (...) Apenas as
padarias abrem, além de algumas
mercearias, que cobram quatro
vezes o preço normal".
O inglês correto, o estilo irônico
e direto e a improbabilidade de
um bagdali normal ter acesso periódico à internet, burlando não
só a censura da mukhabarat (a
polícia secreta de Saddam) como
as constantes faltas de energia, levantaram todo tipo de especulação sobre quem seria Salam Pax.
Os jornalistas discutíamos no
lobby do hotel Palestine se ele não
seria um de nós. Internautas pelo
mundo todo atribuíam seus textos a agentes da CIA ou dos filhos
de Saddam Hussein, dependendo
da sala de bate-papo.
Temendo pelo burburinho envolvendo seu nome e vivendo
num país que, afinal, ainda era comandado por um ditador, Salam
Pax parou de "blogar". Em vão:
seu silêncio começou a ser discutido nas salas. Morreu? Foi assassinado? Ou (pausa) se suicidou?
Até que em junho, num artigo
para a revista eletrônica "Slate", o
jornalista Peter Maass aparentemente resolve o mistério. Salam
Pax não só existia como tinha sido
seu guia -é prática dos jornalistas contratarem locais que falem
inglês por seu conhecimento de
árabe, das ruas e da burocracia.
Ele seria um arquiteto iraquiano
que havia estudado em Viena, falava um inglês perfeito, adorava a
"The New Yorker" e lia e relia "O
Homem do Castelo Alto", ficção
científica de Philip K. Dick (1928-1982), o autor cult cujo conto daria origem ao clássico longa "O
Caçador de Andróides" (1982).
O mesmo Maass, autor de "Love Thy Neighbor - A Story of
War" (Ama Teu Vizinho - Uma
História da Guerra), sobre a Bósnia, cunhou a definição perfeita
do fenômeno: "Salam é a Anne
Frank da Guerra do Iraque".
Guardadas as proporções, seus
escritos realmente podem ser
comparados aos da menina judia
que, escondida dos nazistas com a
família num cubículo durante a
Segunda Guerra Mundial, deixou
um diário em que narra o dia-a-dia de todos que comove pela
simplicidade e pungência.
Diferentemente de Anne Frank,
porém, que morreu antes de ver a
guerra acabar, Salam Pax virou
em vida um ídolo pop -e isso talvez diga mais sobre a diferença
entre as épocas do que propriamente entre os dois diários.
Continua não revelando quem é
ou seu nome, mas há alguns meses vem escrevendo uma coluna
para o diário britânico "The
Guardian". Na última, de 10 de
novembro, anuncia que seu blog
virou um photolog e que o filme
que fez quando saiu pelas ruas de
Bagdá, registrando o que via, iria
ao ar naquele dia, pela BBC2.
Mais: tudo o que foi registrado
no seu blog entre 7 de setembro
de 2002 e 28 de junho de 2003 virou livro, "O Blog de Bagdá", que
está saindo agora no Brasil.
Como livro, não vale grande
coisa -a transferência para o papel de textos produzidos especificamente para a internet lembra o
esforço vão e de certa forma infantil de tentar segurar a água que
jorra da torneira. Além do mais,
"O Blog de Bagdá" limita-se a
transpor uma coisa a outra, sem
nenhuma reflexão ou intervenção. Mas como experiência e,
mais, como "zeitgeist" (o espírito
de um tempo), é sensacional.
(SÉRGIO DÁVILA)
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