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BERNARDO CARVALHO
Sua Majestade Imperial
Só se fala em identidade
quando ela faz falta. E
quando falta alguma outra coisa.
A identidade costuma ser um assunto deslocado, um substituto, a
miragem de um porto seguro, um
cano de escape, a promessa de um
alívio para a falta de sentido e para o mal-estar dos indivíduos no
mundo e em sociedade.
Já fazia tempo que ninguém
além dos militantes da extrema
direita apelava para a identidade
francesa sem correr o risco de ser
acusado justamente de direitista,
até a revolta nos subúrbios de Paris pô-la de novo em xeque. Agora, todos falam de identidade
francesa, da direita à esquerda,
como quem fala de saúde, educação e trabalho, como um objetivo,
um direito a ser conquistado. A
identidade só vem à baila em
época de crise. E não é à toa que,
no Brasil, ela seja o tema de um
debate cíclico e interminável.
Em 1961, o japonês Kenzaburo
Oe publicou um conto, "Seventeen", cujo protagonista era um
adolescente onanista que se incorporava à massa de manobra
da extrema direita. Em maio e junho de 1960, o Japão foi tomado
por manifestações contra o tratado de segurança que mantinha o
país sob a tutela americana. Em
outubro, o líder do Partido Socialista foi assassinado por um militante de extrema direita, um rapaz de apenas dezessete anos. Oe
se inspirou no terrorista adolescente para compor o personagem
do seu conto. Chegou a escrever
uma segunda parte (em que contava o assassinato), mas a reação
dos ultranacionalistas foi tal (o
escritor foi ameaçado de morte),
que decidiu nunca mais republicá-la.
"Seventeen" acaba de sair na
França, num volume composto
por dois outros contos da primeira fase do autor, com o título "Le
Faste des Morts" ("O Fausto dos
Mortos"), tradução de Ryôji Nakamura e René de Ceccatty (ed.
Gallimard). É um texto perturbador, que trata de um processo psicológico paradoxal e aparentemente contraditório: para alcançar a identidade, é preciso que o
personagem deixe de ser quem ele
é. A identidade é o que vem fazê-lo esquecer de tudo o que não tinha resposta, de todas as suas inseguranças e inquietações existenciais, em nome do conforto e
da paz de se sentir parte de um
grupo, por mais violento que esse
grupo seja em relação ao que lhe é
exterior -e talvez justamente
por isso.
O adolescente onanista vive o
desconforto e a angústia que são
próprios da consciência de si.
"Desde que tomava consciência
de mim, tinha a sensação de que
todos os olhares do mundo se dirigiam a mim (...). A simples idéia
de que pudesse existir uma conjunção de corpo e espírito chamada "eu" já me fazia morrer de vergonha. (...) Queria suprimir o
olhar dos outros. Ou simplesmente me suprimir."
No aniversário de dezessete
anos, além de se masturbar, o
adolescente briga com a irmã e
despreza o pai americanizado, as
autoridades e os políticos conservadores. "Em política, particularmente, são sempre os outros que
fazem tudo (...). Os políticos são os
outros dos outros. (...) É isso a política." Não entende nada e não se
identifica com ninguém. A única
coisa que vê na sua frente é a falta
de sentido e o mal-estar de ser
uma pessoa. Até ser levado a um
comício do velho extremista Kunihiko Sakakibara, líder da Ação
Imperial, grupo militarista e ultranacionalista, que não reconhece a autoridade de nenhum japonês além do imperador, cultuado
como um deus.
"Eu me entregava à coisa num
arroubo, como se estivesse dormindo. E aí, como num sonho, comecei a ouvir, com os meus próprios ouvidos, palavras beligerantes e cheias de ódio que eu lançava aos outros no mundo real. Mas
era Kunihiko Sakakibara que as
cuspia no meu lugar. Os epítetos
de guerra e de ódio que o discurso
dele continha pertenciam todos à
minha voz interior. Era a minha
alma que gritava."
Pela primeira vez, o adolescente
deixa de ver a autoridade como o
outro. Passa a pertencer. Encontrar a identidade, nesse caso, é
paradoxalmente falar pela boca
do outro, deixar-se expressar pela
boca do outro como se estivesse
falando com a própria. O processo
de identificação começa com a
perda do peso de ter que lidar sozinho com a incompreensão e o
desconforto de ser um indivíduo.
"Um milagre tinha acontecido:
eu me tornara uma outra personalidade. Tinha me convertido.
(...) O uniforme da Ação Imperial
imitava o das S.S. alemãs. Quando eu caminhava pela rua assim
vestido, sentia uma viva sensação
de felicidade. Hermeticamente fechado nessa armadura, como um
escaravelho, tinha certeza de que
os outros já não viam o que havia
em mim de frouxo, fraco, vulnerável e desengonçado, e me sentia
no paraíso."
A identidade encobre a vulnerabilidade do ser e do sujeito. Protege o indivíduo, como uma carapaça, do vazio de sentido e dos
olhares dos outros. O alívio de
pertencer se desdobra num delírio
onipotente. Graças à lealdade ao
grupo, ele já não teme a morte, luta por uma causa, acredita que é
japonês ou o que quer que seja.
Até a morte passa a fazer sentido.
Agora, pode matar e morrer pela
nação ou pelo imperador. "É preciso, ao abandonar todo espírito
individual, devotar-se de corpo e
alma à Sua Majestade Imperial.
Abandonar meu espírito individual! Senti que aquela névoa, infestada de contradições que até
então me torturavam, tinha se
dissipado." Sua Majestade Imperial, a identidade.
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