São Paulo, terça-feira, 06 de dezembro de 2005

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BERNARDO CARVALHO

Sua Majestade Imperial

Só se fala em identidade quando ela faz falta. E quando falta alguma outra coisa. A identidade costuma ser um assunto deslocado, um substituto, a miragem de um porto seguro, um cano de escape, a promessa de um alívio para a falta de sentido e para o mal-estar dos indivíduos no mundo e em sociedade.
Já fazia tempo que ninguém além dos militantes da extrema direita apelava para a identidade francesa sem correr o risco de ser acusado justamente de direitista, até a revolta nos subúrbios de Paris pô-la de novo em xeque. Agora, todos falam de identidade francesa, da direita à esquerda, como quem fala de saúde, educação e trabalho, como um objetivo, um direito a ser conquistado. A identidade só vem à baila em época de crise. E não é à toa que, no Brasil, ela seja o tema de um debate cíclico e interminável.
Em 1961, o japonês Kenzaburo Oe publicou um conto, "Seventeen", cujo protagonista era um adolescente onanista que se incorporava à massa de manobra da extrema direita. Em maio e junho de 1960, o Japão foi tomado por manifestações contra o tratado de segurança que mantinha o país sob a tutela americana. Em outubro, o líder do Partido Socialista foi assassinado por um militante de extrema direita, um rapaz de apenas dezessete anos. Oe se inspirou no terrorista adolescente para compor o personagem do seu conto. Chegou a escrever uma segunda parte (em que contava o assassinato), mas a reação dos ultranacionalistas foi tal (o escritor foi ameaçado de morte), que decidiu nunca mais republicá-la.
"Seventeen" acaba de sair na França, num volume composto por dois outros contos da primeira fase do autor, com o título "Le Faste des Morts" ("O Fausto dos Mortos"), tradução de Ryôji Nakamura e René de Ceccatty (ed. Gallimard). É um texto perturbador, que trata de um processo psicológico paradoxal e aparentemente contraditório: para alcançar a identidade, é preciso que o personagem deixe de ser quem ele é. A identidade é o que vem fazê-lo esquecer de tudo o que não tinha resposta, de todas as suas inseguranças e inquietações existenciais, em nome do conforto e da paz de se sentir parte de um grupo, por mais violento que esse grupo seja em relação ao que lhe é exterior -e talvez justamente por isso.
O adolescente onanista vive o desconforto e a angústia que são próprios da consciência de si. "Desde que tomava consciência de mim, tinha a sensação de que todos os olhares do mundo se dirigiam a mim (...). A simples idéia de que pudesse existir uma conjunção de corpo e espírito chamada "eu" já me fazia morrer de vergonha. (...) Queria suprimir o olhar dos outros. Ou simplesmente me suprimir."
No aniversário de dezessete anos, além de se masturbar, o adolescente briga com a irmã e despreza o pai americanizado, as autoridades e os políticos conservadores. "Em política, particularmente, são sempre os outros que fazem tudo (...). Os políticos são os outros dos outros. (...) É isso a política." Não entende nada e não se identifica com ninguém. A única coisa que vê na sua frente é a falta de sentido e o mal-estar de ser uma pessoa. Até ser levado a um comício do velho extremista Kunihiko Sakakibara, líder da Ação Imperial, grupo militarista e ultranacionalista, que não reconhece a autoridade de nenhum japonês além do imperador, cultuado como um deus.
"Eu me entregava à coisa num arroubo, como se estivesse dormindo. E aí, como num sonho, comecei a ouvir, com os meus próprios ouvidos, palavras beligerantes e cheias de ódio que eu lançava aos outros no mundo real. Mas era Kunihiko Sakakibara que as cuspia no meu lugar. Os epítetos de guerra e de ódio que o discurso dele continha pertenciam todos à minha voz interior. Era a minha alma que gritava."
Pela primeira vez, o adolescente deixa de ver a autoridade como o outro. Passa a pertencer. Encontrar a identidade, nesse caso, é paradoxalmente falar pela boca do outro, deixar-se expressar pela boca do outro como se estivesse falando com a própria. O processo de identificação começa com a perda do peso de ter que lidar sozinho com a incompreensão e o desconforto de ser um indivíduo.
"Um milagre tinha acontecido: eu me tornara uma outra personalidade. Tinha me convertido. (...) O uniforme da Ação Imperial imitava o das S.S. alemãs. Quando eu caminhava pela rua assim vestido, sentia uma viva sensação de felicidade. Hermeticamente fechado nessa armadura, como um escaravelho, tinha certeza de que os outros já não viam o que havia em mim de frouxo, fraco, vulnerável e desengonçado, e me sentia no paraíso."
A identidade encobre a vulnerabilidade do ser e do sujeito. Protege o indivíduo, como uma carapaça, do vazio de sentido e dos olhares dos outros. O alívio de pertencer se desdobra num delírio onipotente. Graças à lealdade ao grupo, ele já não teme a morte, luta por uma causa, acredita que é japonês ou o que quer que seja. Até a morte passa a fazer sentido. Agora, pode matar e morrer pela nação ou pelo imperador. "É preciso, ao abandonar todo espírito individual, devotar-se de corpo e alma à Sua Majestade Imperial. Abandonar meu espírito individual! Senti que aquela névoa, infestada de contradições que até então me torturavam, tinha se dissipado." Sua Majestade Imperial, a identidade.


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