|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
JOÃO PEREIRA COUTINHO
A culpa foi do macaco
A história da humanidade é uma história recorrente de conquista e colonização, até voltarmos ao paleolítico
BELO MOMENTO: nos quase 200
anos da abolição do tráfico de
escravos pela Grã-Bretanha,
Tony Blair resolveu pedir desculpas.
Mas desculpas de quê?
Atendendo à redundância da data,
uma pessoa até acredita que Blair
pediu desculpas por terem acabado
com o negócio.
Falso alarme. Para Blair, o ponto
não está na abolição do tráfico pela
Grã-Bretanha, uma atitude que merece aplausos, não desculpas. E também não está no fato de Londres não
só ter abolido (em 1807) como ter
obrigado outros a abolir (a partir de
1833), um gesto prepotente e tipicamente imperialista que arruinou a
vida de muitos países no século 19.
O problema está na existência da
coisa: 200 anos depois, ela pode continuar a ser feita na África ou na
Ásia; no Sudão ou no Iémen; sem esquecer os regimes semi-escravagistas que ainda prosperam no Extremo Oriente e mesmo na América
Latina.
Mas o Ocidente "branco" e "europeu", na sua corrupção e ganância,
já acabou com isso há muito tem-
po. Duzentos anos atrás. Haverá
desculpa?
Infelizmente, a humanidade de
Blair não foi aplaudida pelos representantes do setor. Segundo parece,
associações ligadas à "indústria da
culpa" exigiram mais de Blair: mais
lamentos públicos e, já agora, mais
dinheiro, porque existem descendentes de escravos que ainda vivem
nas grilhetas da opressão.
Eu não pretendo incomodar o fanatismo das brigadas. Mas se a idéia
é abrir a porta da escravatura, então
é preciso abrir as janelas também.
Para começar, é importante que as
brigadas não se limitem a Londres.
E comecem também a pedir dinheiro aos descendentes de africanos
que não só capturavam escravos como cometiam a imprudência grave
de vendê-los.
Os impérios europeus transportavam negros para o Novo Mundo.
Mas, convém não esquecer, o tráfico
viveu de negros que vendiam negros, uma imagem nem sempre simpática na mitologia higiênica da escravatura.
E, claro, não sejamos tão modestos: se a culpa dos nossos pais deve
ser expiada pelos seus filhos, não
há nenhum motivo para ficarmos
pelo Ocidente. Eu, na minha qualidade de europeu, posso ter colonizado a África.
Mas, digo e repito, só depois de a
África ter colonizado a mim. E só depois de a Ásia ter colonizado a Europa. E só depois de Roma ter sido invadida pelos bárbaros. E só depois
de a Grécia ter sido conquistada por
Roma.
A história da humanidade é uma
história recorrente de conquista e
colonização. E, se a culpa é uma espécie de doença genética que vai
passando de geração em geração,
acabaremos recuando sempre e
sempre e sempre, até chegarmos ao
momento fulcral em que o segundo
hominídeo explorou o primeiro nos
alvores do paleolítico.
Então, e só então, seremos capazes de resolver os erros da história,
indenizando convenientemente a
descendência. Toda a descendência.
Não será fácil? Nunca é fácil admitir que o avô era um macaco. Mas vale a pena tentar.
Texto Anterior: Mônica Bergamo Próximo Texto: Música: Mary J. Blige é destaque em premiação Índice
|