São Paulo, quarta-feira, 06 de dezembro de 2006

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

A culpa foi do macaco

A história da humanidade é uma história recorrente de conquista e colonização, até voltarmos ao paleolítico

BELO MOMENTO: nos quase 200 anos da abolição do tráfico de escravos pela Grã-Bretanha, Tony Blair resolveu pedir desculpas. Mas desculpas de quê?
Atendendo à redundância da data, uma pessoa até acredita que Blair pediu desculpas por terem acabado com o negócio.
Falso alarme. Para Blair, o ponto não está na abolição do tráfico pela Grã-Bretanha, uma atitude que merece aplausos, não desculpas. E também não está no fato de Londres não só ter abolido (em 1807) como ter obrigado outros a abolir (a partir de 1833), um gesto prepotente e tipicamente imperialista que arruinou a vida de muitos países no século 19.
O problema está na existência da coisa: 200 anos depois, ela pode continuar a ser feita na África ou na Ásia; no Sudão ou no Iémen; sem esquecer os regimes semi-escravagistas que ainda prosperam no Extremo Oriente e mesmo na América Latina.
Mas o Ocidente "branco" e "europeu", na sua corrupção e ganância, já acabou com isso há muito tem- po. Duzentos anos atrás. Haverá desculpa?
Infelizmente, a humanidade de Blair não foi aplaudida pelos representantes do setor. Segundo parece, associações ligadas à "indústria da culpa" exigiram mais de Blair: mais lamentos públicos e, já agora, mais dinheiro, porque existem descendentes de escravos que ainda vivem nas grilhetas da opressão.
Eu não pretendo incomodar o fanatismo das brigadas. Mas se a idéia é abrir a porta da escravatura, então é preciso abrir as janelas também.
Para começar, é importante que as brigadas não se limitem a Londres. E comecem também a pedir dinheiro aos descendentes de africanos que não só capturavam escravos como cometiam a imprudência grave de vendê-los.
Os impérios europeus transportavam negros para o Novo Mundo. Mas, convém não esquecer, o tráfico viveu de negros que vendiam negros, uma imagem nem sempre simpática na mitologia higiênica da escravatura.
E, claro, não sejamos tão modestos: se a culpa dos nossos pais deve ser expiada pelos seus filhos, não há nenhum motivo para ficarmos pelo Ocidente. Eu, na minha qualidade de europeu, posso ter colonizado a África.
Mas, digo e repito, só depois de a África ter colonizado a mim. E só depois de a Ásia ter colonizado a Europa. E só depois de Roma ter sido invadida pelos bárbaros. E só depois de a Grécia ter sido conquistada por Roma.
A história da humanidade é uma história recorrente de conquista e colonização. E, se a culpa é uma espécie de doença genética que vai passando de geração em geração, acabaremos recuando sempre e sempre e sempre, até chegarmos ao momento fulcral em que o segundo hominídeo explorou o primeiro nos alvores do paleolítico.
Então, e só então, seremos capazes de resolver os erros da história, indenizando convenientemente a descendência. Toda a descendência.
Não será fácil? Nunca é fácil admitir que o avô era um macaco. Mas vale a pena tentar.


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