São Paulo, sábado, 06 de dezembro de 2008

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RODAPÉ LITERÁRIO

Sebald a caminho


Uma viagem geográfica e interior rumo às origens poderia resumir a trama de "Vertigem: Sensações"

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

NA NARRATIVA moderna, menos do que acontecimentos memoráveis, o assunto passou a ser, cada vez mais, a memória ela mesma, máquina obscura que recombina gente, acontecimentos e sensações em enredos quebradiços.
Desde o primado do eu testemunhal, garantia de verossimilhança, mas não de fidedignidade, típico dos primórdios do romance, passando pela terceira pessoa que afetava isenção do século 19, até o eu errático e dubitativo dos nossos dias, muita água correu por sob as pontes do romance.
No caso dos romances de W.G.Sebald (1944-2001), a água turva da história contemporânea européia, que só fez multiplicar a insegurança e as incertezas individuais, forçando a invenção de uma solução técnica original capaz de acomodar o enfrentamento entre a esperada objetividade, própria do gênero, e a expressão da instabilidade de um narrador ressabiado.
Uma viagem geográfica e interior rumo às origens, acidentada e espelhada em outras, distantes no tempo e no espaço, assim poderia se resumir a trama de "Vertigem: Sensações" (1990), o romance de estréia do autor de "Austerlitz". Os dois foram editados neste ano pela Companhia das Letras, em excelente tradução de José Marcos Macedo.
Se o ponto de partida de "Vertigem" são as impressões de percurso de um protagonista, narrador anônimo e em crise, em trânsito pela Europa continental, atravessando a Áustria rumo a Veneza, e alcançando, com inúmeras escalas, a aldeia alemã de sua infância, vivida no pós-guerra, seu contraponto é uma coleção de imagens que, intercaladas ao texto, documentam esta trajetória.
Marca registrada de Sebald, as reproduções de estações de trem ou balneários de cura, de recibos de restaurantes ou registros em pensões, traem a atração do narrador -antiturista por natureza- menos pelos lugares que percorre do que pela angústia que a falta da normalidade habitual produz no viajante. Como em Proust, um quarto de hotel, um vagão de trem, uma língua estrangeira entreouvida nunca são corriqueiros, mas labirintos ameaçadores.
Que este protagonista anônimo tenha tanto em comum com o próprio autor (também ele alemão, nascido no interior da Bavária, emigrante que se fixou na Inglaterra) apenas potencializa a tensão entre o interior e o exterior que singulariza o livro. O mesmo jogo abissal de identificação e estranhamento atua nos relatos de viagem de outros escritores, falsas digressões, inseridos no volume.
Stendhal e Casanova, na Itália, e Kafka, na Áustria, servem a Sebald para demonstrar o quanto é frágil a noção do eu, refém de memória e desejo instáveis, desconfortável em mundo inóspito. Expostos a estas vidas paralelas, também os leitores arriscam encontrar seu quinhão de vertigem reparadora.


VERTIGEM: SENSAÇÕES
Autor:
W. G. Sebald
Tradução: José Marcos Macedo
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 41 (200 págs.)
Avaliação: ótimo



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