São Paulo, quarta-feira, 07 de janeiro de 2004

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MARCELO COELHO

As efemérides e a moda pós-moderna

O ano passado teve algumas efemérides ingratas, difíceis de comentar. Em setembro, houve o centenário de nascimento de Theodor Adorno -filósofo difícil, esteta intransigente, crítico radical.
Acabei escrevendo um artigo, mas fugi da raia em dezembro, quando chegou o bicentenário do compositor Hector Berlioz. Não fui o único: apesar do renome da "Sinfonia Fantástica", o fato é que mesmo os maníacos da música de concerto procuram manter boa distância do grande romântico francês. Foram restritas as homenagens. A megalomania, o estrondo, o descabelamento das obras mais famosas de Berlioz intimidam bastante -e nos levam a desconhecer o resto de sua produção. Arrisco-me a dizer que não sei se a perda é das mais consideráveis.
Também foi visível certo mal-estar na comemoração dos cem anos de nascimento de Cândido Portinari. Aí pelo meio do ano, houve uma bela exposição no MAM; a homenagem foi correta, mas principalmente destituída de pretensões sacralizantes.
É que o papel de Portinari como um dos grandes fundadores da consciência nacional brasileira no século 20 -ao lado de Villa-Lobos e Mário de Andrade, por exemplo- vem sendo posto em dúvida já há um bom tempo.
O fenômeno talvez diga menos respeito às qualidades de sua obra do que a uma modificação na maneira com que enxergamos a nós mesmos. Até a década de 80, a idéia de uma construção épica da nossa nacionalidade -de Tiradentes a Juscelino ou Tancredo- refletia por assim dizer uma perspectiva otimista, um script emancipatório, que se desfez ao longo de duas décadas de recesssão globalizada.
O ímpeto "moderno" de Portinari, afirmativo, dramático, operário, construtivo -oficial, se quisermos- cedeu lugar, nas preferências do público, ao estilo simultaneamente nostálgico e corrosivo, ahistórico e irônico, paradoxal e mítico de Tarsila.
Falando em nacionalismo, passo à efeméride mais incômoda de 2003. Em 17 de dezembro, os Estados Unidos comemoraram o centenário da invenção do avião. Ou melhor, do curtíssimo vôo dos irmãos Wilbur e Orville Wright numa engenhoca denominada Kitty Hawk. Santos Dumont voou no 14-Bis em 1906.
Não vou entrar na polêmica sobre quem inventou o avião. O próprio fato de chamá-la de "polêmica" já é suspeito. Para nós, brasileiros, não há polêmica: Santos Dumont tem todo o mérito da invenção. Já para os americanos (e, convenhamos, para o resto do mundo também), a polêmica nunca existiu.
A novidade é que em 2003 os Estados Unidos resolveram prestar atenção, pela primeira vez, imagino, ao nosso ponto de vista. O "New York Times" publicou artigos curiosos a respeito. O jornalista Larry Rother cita a manchete do "Dayton Daily News" em 1903, que noticiava de modo bem favorável a nós o feito dos irmãos Wright: "Rapazes de Dayton imitam o grande Santos Dumont!" E olha que Santos Dumont ainda nem tinha inventado o avião. O jornal se referia apenas a seus vôos de dirigível em Paris -como a famosa circunavegação da Torre Eiffel em 1901.
Rother visitou a terra natal de Santos Dumont e registra, respeitosamente, nosso repúdio à invenção dos Wright. Especula em seu artigo que talvez os irmãos Wright tenham funcionado como uma espécie de Bill Gates da aviação, ao passo que Santos Dumont seria o equivalente aos criadores do Linux, que não quiseram obter lucros nem patentear a descoberta.
Os argumentos técnicos -e jurídicos- sobre a prioridade dos Wright ou de Santos Dumont estão, felizmente, fora de meu alcance. Mas o debate poderia servir de tema para uma pesquisa antropológica ou no campo da história das ideologias.
O que me parece curioso, a esse respeito, é de que modo o universo do "politicamente correto" impregna agora o ponto de vista americano. Em tempos de multiculturalismo, torna-se muito mais considerável a existência de um pioneiro da aviação no Brasil; ainda mais se há chances de ter sido gay -tema, como se sabe, que também pode ser objeto de infinitas discussões.
Os ventos políticos sopram, assim, um pouquinho mais em favor de Santos Dumont. Não há dúvida de que a predominância americana em qualquer campo de atividade torna desigual o combate. Todo brasileiro tem convicção de que, se nós fôssemos a potência que os Estados Unidos são, os méritos de Santos Dumont seriam reconhecidos universalmente.
No fundo, isso acaba sendo uma versão do conhecido relativismo pós-moderno. Não existiria verdade absoluta, nessa como em quaisquer outras questões, e tudo dependeria do poder de quem conta a história. O país mais forte tem mais condições de definir o que é um avião, o que é um motor, o que é um vôo -se vale um aeroplano movido a catapulta, se um vôo sem testemunhas conta mais do que outro oficialmente registrado etc.
Toda definição histórica seria, nessa visão pós-moderna, uma questão de força, de propaganda, de convencimento. O que é uma perspectiva bem chata para nós, aliás, que somos o lado fraco da história; ficaríamos apenas com o ressentimento.
Prefiro ser mais antiquado, otimista e científico: acredito que se juntassem vinte especialistas em história da aviação num debate, durante meses a fio, alguma conclusão objetiva terminaria emergindo.
Mas reconheço que esta é uma crença de minha parte; diante das flutuações da moda pós-moderna, sempre me sinto mais pesado que o ar.

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