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MARCELO COELHO
As efemérides e a moda pós-moderna
O ano passado teve algumas
efemérides ingratas, difíceis
de comentar. Em setembro, houve
o centenário de nascimento de
Theodor Adorno -filósofo difícil,
esteta intransigente, crítico radical.
Acabei escrevendo um artigo,
mas fugi da raia em dezembro,
quando chegou o bicentenário do
compositor Hector Berlioz. Não
fui o único: apesar do renome da
"Sinfonia Fantástica", o fato é
que mesmo os maníacos da música de concerto procuram manter
boa distância do grande romântico francês. Foram restritas as homenagens. A megalomania, o estrondo, o descabelamento das
obras mais famosas de Berlioz intimidam bastante -e nos levam
a desconhecer o resto de sua produção. Arrisco-me a dizer que
não sei se a perda é das mais consideráveis.
Também foi visível certo mal-estar na comemoração dos cem
anos de nascimento de Cândido
Portinari. Aí pelo meio do ano,
houve uma bela exposição no
MAM; a homenagem foi correta,
mas principalmente destituída de
pretensões sacralizantes.
É que o papel de Portinari como
um dos grandes fundadores da
consciência nacional brasileira
no século 20 -ao lado de Villa-Lobos e Mário de Andrade, por
exemplo- vem sendo posto em
dúvida já há um bom tempo.
O fenômeno talvez diga menos
respeito às qualidades de sua
obra do que a uma modificação
na maneira com que enxergamos
a nós mesmos. Até a década de 80,
a idéia de uma construção épica
da nossa nacionalidade -de Tiradentes a Juscelino ou Tancredo- refletia por assim dizer uma
perspectiva otimista, um script
emancipatório, que se desfez ao
longo de duas décadas de recesssão globalizada.
O ímpeto "moderno" de Portinari, afirmativo, dramático, operário, construtivo -oficial, se
quisermos- cedeu lugar, nas
preferências do público, ao estilo
simultaneamente nostálgico e
corrosivo, ahistórico e irônico, paradoxal e mítico de Tarsila.
Falando em nacionalismo, passo à efeméride mais incômoda de
2003. Em 17 de dezembro, os Estados Unidos comemoraram o centenário da invenção do avião. Ou
melhor, do curtíssimo vôo dos irmãos Wilbur e Orville Wright numa engenhoca denominada Kitty
Hawk. Santos Dumont voou no
14-Bis em 1906.
Não vou entrar na polêmica sobre quem inventou o avião. O
próprio fato de chamá-la de "polêmica" já é suspeito. Para nós,
brasileiros, não há polêmica: Santos Dumont tem todo o mérito da
invenção. Já para os americanos
(e, convenhamos, para o resto do
mundo também), a polêmica
nunca existiu.
A novidade é que em 2003 os Estados Unidos resolveram prestar
atenção, pela primeira vez, imagino, ao nosso ponto de vista. O
"New York Times" publicou artigos curiosos a respeito. O jornalista Larry Rother cita a manchete
do "Dayton Daily News" em 1903,
que noticiava de modo bem favorável a nós o feito dos irmãos
Wright: "Rapazes de Dayton imitam o grande Santos Dumont!" E
olha que Santos Dumont ainda
nem tinha inventado o avião. O
jornal se referia apenas a seus
vôos de dirigível em Paris -como
a famosa circunavegação da Torre Eiffel em 1901.
Rother visitou a terra natal de
Santos Dumont e registra, respeitosamente, nosso repúdio à invenção dos Wright. Especula em
seu artigo que talvez os irmãos
Wright tenham funcionado como
uma espécie de Bill Gates da aviação, ao passo que Santos Dumont
seria o equivalente aos criadores
do Linux, que não quiseram obter
lucros nem patentear a descoberta.
Os argumentos técnicos -e jurídicos- sobre a prioridade dos
Wright ou de Santos Dumont estão, felizmente, fora de meu alcance. Mas o debate poderia servir de tema para uma pesquisa
antropológica ou no campo da
história das ideologias.
O que me parece curioso, a esse
respeito, é de que modo o universo do "politicamente correto" impregna agora o ponto de vista
americano. Em tempos de multiculturalismo, torna-se muito
mais considerável a existência de
um pioneiro da aviação no Brasil;
ainda mais se há chances de ter
sido gay -tema, como se sabe,
que também pode ser objeto de
infinitas discussões.
Os ventos políticos sopram, assim, um pouquinho mais em favor de Santos Dumont. Não há
dúvida de que a predominância
americana em qualquer campo
de atividade torna desigual o
combate. Todo brasileiro tem
convicção de que, se nós fôssemos
a potência que os Estados Unidos
são, os méritos de Santos Dumont
seriam reconhecidos universalmente.
No fundo, isso acaba sendo
uma versão do conhecido relativismo pós-moderno. Não existiria
verdade absoluta, nessa como em
quaisquer outras questões, e tudo
dependeria do poder de quem
conta a história. O país mais forte
tem mais condições de definir o
que é um avião, o que é um motor, o que é um vôo -se vale um
aeroplano movido a catapulta, se
um vôo sem testemunhas conta
mais do que outro oficialmente
registrado etc.
Toda definição histórica seria,
nessa visão pós-moderna, uma
questão de força, de propaganda,
de convencimento. O que é uma
perspectiva bem chata para nós,
aliás, que somos o lado fraco da
história; ficaríamos apenas com o
ressentimento.
Prefiro ser mais antiquado, otimista e científico: acredito que se
juntassem vinte especialistas em
história da aviação num debate,
durante meses a fio, alguma conclusão objetiva terminaria emergindo.
Mas reconheço que esta é uma
crença de minha parte; diante das
flutuações da moda pós-moderna, sempre me sinto mais pesado
que o ar.
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