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ARTIGO
Cordialmente, JK ainda parece rir de nós
OTAVIO FRIAS FILHO
DIRETOR DE REDAÇÃO
Juscelino Kubitschek ficou
associado, na memória coletiva, ao principal mito da identidade nacional brasileira, o da "cordialidade". De acordo com esse
mito, cada povo teria certas características inatas, inerentes a sua
constituição. O brasileiro seria
"cordial", ou seja, inclinado aos
bons sentimentos, à complacência, à bonomia, à busca permanente de conciliação dos antagonismos no afã de evitar as soluções violentas.
O curioso é que o autor intelectual do conceito de cordialidade,
Sérgio Buarque de Holanda, não
acreditava nesse mito. Como escritor versado nas correntes da
sociologia moderna, que se estabeleceram no começo do século
20, o historiador paulista repelia a
noção de que um povo possa ter,
como uma pessoa, certos traços
fixos, de "nascença". Ele pensava
que tais traços, à primeira vista
inatos, são resultado de condições
históricas e culturais. Mudam,
portanto, com o tempo, conforme
mudem as circunstâncias.
A "cordialidade" aparece no livro clássico de Sérgio Buarque,
"Raízes do Brasil" (1936). Para
azar do autor, um poeta simpatizante do integralismo, Cassiano
Ricardo, resolveu fazer polêmica
em torno do conceito. Na visão
tradicionalista de Cassiano Ricardo, a "cordialidade" do caráter
brasileiro nada mais era que o
equivalente a sua "bondade natural". O brasileiro seria, por natureza, hospitaleiro, alegre, brincalhão, amigo, tolerante.
Clichê coletivo
Ao reeditar seu livro, Sérgio
Buarque refutou com mal-disfarçado desdém a interpretação sentimental de Cassiano Ricardo.
Mas a escolha infeliz do termo
"cordialidade" (que ele tomara
emprestado a um escritor secundário, Ribeiro Couto) já havia feito seu estrago. Pois a "cordialidade" que ficou não foi a de Sérgio
Buarque, mas a de Cassiano Ricardo. Ou melhor, foi o clichê que
já estava na mentalidade coletiva
e que o poeta fez reviver sob pretensa roupagem "sociológica".
Mas qual era, afinal, a "cordialidade" pensada por Sérgio Buarque de Holanda? A noção era um
desdobramento das idéias do sociólogo alemão Max Weber
(1864-1920). Para o autor de "Raízes do Brasil", em sociedades de
tipo agrário, como foi a nossa até
recentemente, o núcleo das relações sociais está na dominância
do proprietário rural sobre a massa de escravos e dependentes que
subsiste à sua volta.
Num ambiente assim, em que
praticamente não existe vida pública nem lei impessoal, as relações pessoais tendem a assumir o
primeiro plano. É isso a "cordialidade": numa situação em que
quase todos dependem da boa
vontade do proprietário onipotente, em que o Estado de Direito
com suas normas igualitárias válidas para todos é mera formalidade para inglês ver, os vínculos
próprios ao domínio doméstico
(não importa se de simpatia ou
hostilidade, desde que pessoais)
adquirem relevo exagerado e função social predominante.
No entanto, conforme a sociedade se industrializa e se urbaniza, como já ocorria quando "Raízes do Brasil" foi publicado, a
"cordialidade" tende a desaparecer. Como todo mito, a versão
"popular" da cordialidade é um
amálgama de verdade e fantasia.
Basta espiar o noticiário ou circular pelas grandes cidades para verificar a falsidade da crença de que
o brasileiro é pacífico, cordial etc.
Por outro lado, é verdade que,
nessa sociedade tão ou mais
agressiva do que qualquer outra,
raramente a violência adquire
forma política ou institucional.
Tanto as ditaduras que tivemos,
como a resistência violenta a elas,
foram relativamente brandas. A
violência é intensa, mas capilar e
desorganizada.
As razões disso ainda são, talvez, o maior enigma da formação
brasileira. Será que o abismo social entre as classes generaliza a
percepção de que é perigoso demais politizar a violência? Será
que ao recebermos levas de idéias
européias fora do contexto de origem e as utilizarmos apenas como
ostentação ornamental desenvolvemos, também, certo ceticismo
quanto aos dogmas e uma saudável sensação de que não vale a pena morrer por uma idéia?
Getúlio Vargas foi outro mestre
manipulador do mito da cordialidade, mas o desfecho brutal do
suicídio quebrou o tom. Sua expressão máxima, portanto, continua sendo JK com aquele seu sorriso inalterável, a máscara franzida num esgar em que ora parece
rir conosco, ora rir de nós ou apesar de nós...
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