São Paulo, sábado, 07 de janeiro de 2006

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ARTIGO

Cordialmente, JK ainda parece rir de nós

OTAVIO FRIAS FILHO
DIRETOR DE REDAÇÃO

Juscelino Kubitschek ficou associado, na memória coletiva, ao principal mito da identidade nacional brasileira, o da "cordialidade". De acordo com esse mito, cada povo teria certas características inatas, inerentes a sua constituição. O brasileiro seria "cordial", ou seja, inclinado aos bons sentimentos, à complacência, à bonomia, à busca permanente de conciliação dos antagonismos no afã de evitar as soluções violentas.
O curioso é que o autor intelectual do conceito de cordialidade, Sérgio Buarque de Holanda, não acreditava nesse mito. Como escritor versado nas correntes da sociologia moderna, que se estabeleceram no começo do século 20, o historiador paulista repelia a noção de que um povo possa ter, como uma pessoa, certos traços fixos, de "nascença". Ele pensava que tais traços, à primeira vista inatos, são resultado de condições históricas e culturais. Mudam, portanto, com o tempo, conforme mudem as circunstâncias.
A "cordialidade" aparece no livro clássico de Sérgio Buarque, "Raízes do Brasil" (1936). Para azar do autor, um poeta simpatizante do integralismo, Cassiano Ricardo, resolveu fazer polêmica em torno do conceito. Na visão tradicionalista de Cassiano Ricardo, a "cordialidade" do caráter brasileiro nada mais era que o equivalente a sua "bondade natural". O brasileiro seria, por natureza, hospitaleiro, alegre, brincalhão, amigo, tolerante.

Clichê coletivo
Ao reeditar seu livro, Sérgio Buarque refutou com mal-disfarçado desdém a interpretação sentimental de Cassiano Ricardo. Mas a escolha infeliz do termo "cordialidade" (que ele tomara emprestado a um escritor secundário, Ribeiro Couto) já havia feito seu estrago. Pois a "cordialidade" que ficou não foi a de Sérgio Buarque, mas a de Cassiano Ricardo. Ou melhor, foi o clichê que já estava na mentalidade coletiva e que o poeta fez reviver sob pretensa roupagem "sociológica".
Mas qual era, afinal, a "cordialidade" pensada por Sérgio Buarque de Holanda? A noção era um desdobramento das idéias do sociólogo alemão Max Weber (1864-1920). Para o autor de "Raízes do Brasil", em sociedades de tipo agrário, como foi a nossa até recentemente, o núcleo das relações sociais está na dominância do proprietário rural sobre a massa de escravos e dependentes que subsiste à sua volta.
Num ambiente assim, em que praticamente não existe vida pública nem lei impessoal, as relações pessoais tendem a assumir o primeiro plano. É isso a "cordialidade": numa situação em que quase todos dependem da boa vontade do proprietário onipotente, em que o Estado de Direito com suas normas igualitárias válidas para todos é mera formalidade para inglês ver, os vínculos próprios ao domínio doméstico (não importa se de simpatia ou hostilidade, desde que pessoais) adquirem relevo exagerado e função social predominante.
No entanto, conforme a sociedade se industrializa e se urbaniza, como já ocorria quando "Raízes do Brasil" foi publicado, a "cordialidade" tende a desaparecer. Como todo mito, a versão "popular" da cordialidade é um amálgama de verdade e fantasia. Basta espiar o noticiário ou circular pelas grandes cidades para verificar a falsidade da crença de que o brasileiro é pacífico, cordial etc.
Por outro lado, é verdade que, nessa sociedade tão ou mais agressiva do que qualquer outra, raramente a violência adquire forma política ou institucional. Tanto as ditaduras que tivemos, como a resistência violenta a elas, foram relativamente brandas. A violência é intensa, mas capilar e desorganizada.
As razões disso ainda são, talvez, o maior enigma da formação brasileira. Será que o abismo social entre as classes generaliza a percepção de que é perigoso demais politizar a violência? Será que ao recebermos levas de idéias européias fora do contexto de origem e as utilizarmos apenas como ostentação ornamental desenvolvemos, também, certo ceticismo quanto aos dogmas e uma saudável sensação de que não vale a pena morrer por uma idéia?
Getúlio Vargas foi outro mestre manipulador do mito da cordialidade, mas o desfecho brutal do suicídio quebrou o tom. Sua expressão máxima, portanto, continua sendo JK com aquele seu sorriso inalterável, a máscara franzida num esgar em que ora parece rir conosco, ora rir de nós ou apesar de nós...


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