São Paulo, sábado, 07 de janeiro de 2006

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RODAPÉ

Os índios e os outros

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

Numa cena de "Diários de Motocicleta", um menino, esperto guia local, apresenta dois muros contíguos a Ernesto Che Guevara e Alberto Granado, viajantes recém-chegados a Cusco. O de pedras colossais, explica, remonta aos seus ancestrais, os incas; o outro, mais modesto, é obra dos conquistadores espanhóis, os incapazes. O antropólogo e romancista peruano José María Arguedas (1911-1969) dedicou vida e obra a pensar as conseqüências políticas, econômicas, mas sobretudo culturais, deste confronto étnico que a ironia do trocadilho esconde e revela.
Em "Os Rios Profundos", romance de 1958 e parte de sua obra madura que nos chega tardiamente, em excelente tradução de Josely Vianna Baptista, impõe-se a força poética com que Arguedas intuía e esboçava o quadro violento e complexo de integração desigual e resistência das múltiplas culturas, heterogêneas e irredutíveis, presentes nos Andes peruanos. Filho de um advogado andino, órfão de mãe aos três anos, ele próprio era fruto da mestiçagem cultural: cresceu bilíngüe, alimentando-se dos mitos e da literatura oral dos camponeses indígenas, falantes de quíchua.
As marcas biográficas na obra de Arguedas nunca são acidentais. Na militância acadêmica e nas altas funções públicas que ocupou como folclorista, as raízes andinas sempre falaram tão alto quanto a condição de autor que escreve no bojo da crise moderna da tradição ocidental. Assim, a fórmula do romance indigenista não passou intacta pelas suas mãos, tensionada formalmente pelo caráter lingüisticamente híbrido da sua escrita, filtrada em um espanhol gramaticalmente erodido pela influência da língua local e cravada de poemas e expressões quíchuas.
Não por acaso, o narrador é um menino na passagem para a adolescência, Ernesto, que, no coração dos Andes peruanos, é confiado pelo pai, um advogado que erra de cidade em cidade, a um colégio religioso. Num contexto carregado de pressão ideológica e barreiras de classe, Ernesto redescobre as dificuldades de fazer conviver e conversar entre si visões de mundo tão diversas. O que poderia passar por um romance de formação, focado no amadurecimento e aprendizado no microcosmo do internato, presta-se igualmente a alegoria da formação do povo das Américas, cindido entre os que têm e os destituídos, entre os que provêm do mundo arcaico das serras e vales interioranos e os que se orgulham da pretensa modernidade da costa, os índios e os outros.
Estão lá as grandes violências cometidas pelos proprietários de terra contra os servos do campo, mas a ênfase do narrador recai sobre as batalhas simbólicas, os processos cotidianos de humilhação e sujeição pela desqualificação, contrabalançados por movimentos de afirmação utópica da cultura local, que, por sua vez, não deixa de apropriar-se de traços dos colonizadores.
O cabo-de-guerra entre as duas matrizes culturais que convivem no protagonista e sua aposta no mundo mítico andino ecoam a escolha engajada de Artigas, auto-proclamado um "indivíduo quíchua moderno". No romance, as cenas de abertura que antecedem seu ingresso no colégio dão aspecto concreto a sua filiação ocidental: são laços de sangue, como os que o unem ao rico tio que visita na companhia do pai, transmitindo culpa e deformações, análogas às que turvam a caridade dos padres em arenga conservadora, nos momentos de convulsão social. No outro extremo, um pião mágico, capaz de falar aos deuses segundo a tradição, o Zumbayllu, encarnam o sustento de suas apostas e lucidez na cultura local, orientando as alianças que estabelece dentro do internato, colocando-o, nas situações críticas, em sintonia com as montanhas e os rios, hipóstases naturais dos valores em que precisa acreditar.
Ao lado de "Todas las Sangres", de 1964, e de "El Zorro de Arriba y el Zorro de Abajo", interrompido por seu suicídio e publicado postumamente em 1971, "Os Rios Profundos" testemunham a máxima resistência, intensamente vivida e maximamente realizada na arte, numa obra sem concessões, à altura de sua ambição.


Fábio de Souza Andrade escreve quinzenalmente neste espaço

Os Rios Profundos
    
Autor: José María Arguedas
Tradução: Josely Vianna Baptista
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 46,50 (320 págs.)


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