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RODAPÉ
Os índios e os outros
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA
Numa cena de "Diários de
Motocicleta", um menino,
esperto guia local, apresenta dois
muros contíguos a Ernesto Che
Guevara e Alberto Granado, viajantes recém-chegados a Cusco. O
de pedras colossais, explica, remonta aos seus ancestrais, os incas; o outro, mais modesto, é obra
dos conquistadores espanhóis, os
incapazes. O antropólogo e romancista peruano José María Arguedas (1911-1969) dedicou vida e
obra a pensar as conseqüências
políticas, econômicas, mas sobretudo culturais, deste confronto étnico que a ironia do trocadilho esconde e revela.
Em "Os Rios Profundos", romance de 1958 e parte de sua obra
madura que nos chega tardiamente, em excelente tradução de
Josely Vianna Baptista, impõe-se
a força poética com que Arguedas
intuía e esboçava o quadro violento e complexo de integração desigual e resistência das múltiplas
culturas, heterogêneas e irredutíveis, presentes nos Andes peruanos. Filho de um advogado andino, órfão de mãe aos três anos, ele
próprio era fruto da mestiçagem
cultural: cresceu bilíngüe, alimentando-se dos mitos e da literatura
oral dos camponeses indígenas,
falantes de quíchua.
As marcas biográficas na obra
de Arguedas nunca são acidentais. Na militância acadêmica e
nas altas funções públicas que
ocupou como folclorista, as raízes
andinas sempre falaram tão alto
quanto a condição de autor que
escreve no bojo da crise moderna
da tradição ocidental. Assim, a
fórmula do romance indigenista
não passou intacta pelas suas
mãos, tensionada formalmente
pelo caráter lingüisticamente híbrido da sua escrita, filtrada em
um espanhol gramaticalmente
erodido pela influência da língua
local e cravada de poemas e expressões quíchuas.
Não por acaso, o narrador é um
menino na passagem para a adolescência, Ernesto, que, no coração dos Andes peruanos, é confiado pelo pai, um advogado que erra de cidade em cidade, a um colégio religioso. Num contexto carregado de pressão ideológica e
barreiras de classe, Ernesto redescobre as dificuldades de fazer
conviver e conversar entre si visões de mundo tão diversas. O
que poderia passar por um romance de formação, focado no
amadurecimento e aprendizado
no microcosmo do internato,
presta-se igualmente a alegoria da
formação do povo das Américas,
cindido entre os que têm e os destituídos, entre os que provêm do
mundo arcaico das serras e vales
interioranos e os que se orgulham
da pretensa modernidade da costa, os índios e os outros.
Estão lá as grandes violências
cometidas pelos proprietários de
terra contra os servos do campo,
mas a ênfase do narrador recai sobre as batalhas simbólicas, os processos cotidianos de humilhação
e sujeição pela desqualificação,
contrabalançados por movimentos de afirmação utópica da cultura local, que, por sua vez, não deixa de apropriar-se de traços dos
colonizadores.
O cabo-de-guerra entre as duas
matrizes culturais que convivem
no protagonista e sua aposta no
mundo mítico andino ecoam a
escolha engajada de Artigas, auto-proclamado um "indivíduo quíchua moderno". No romance, as
cenas de abertura que antecedem
seu ingresso no colégio dão aspecto concreto a sua filiação ocidental: são laços de sangue, como os
que o unem ao rico tio que visita
na companhia do pai, transmitindo culpa e deformações, análogas
às que turvam a caridade dos padres em arenga conservadora, nos
momentos de convulsão social.
No outro extremo, um pião mágico, capaz de falar aos deuses segundo a tradição, o Zumbayllu,
encarnam o sustento de suas
apostas e lucidez na cultura local,
orientando as alianças que estabelece dentro do internato, colocando-o, nas situações críticas,
em sintonia com as montanhas e
os rios, hipóstases naturais dos
valores em que precisa acreditar.
Ao lado de "Todas las Sangres",
de 1964, e de "El Zorro de Arriba y
el Zorro de Abajo", interrompido
por seu suicídio e publicado postumamente em 1971, "Os Rios
Profundos" testemunham a máxima resistência, intensamente vivida e maximamente realizada na
arte, numa obra sem concessões,
à altura de sua ambição.
Fábio de Souza Andrade escreve quinzenalmente neste espaço
Os Rios Profundos
Autor: José María Arguedas
Tradução: Josely Vianna Baptista
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 46,50 (320 págs.)
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