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"O Guarani" é a única mácula na minha carreira"
Filme de Norma Bengell teve prestação de contas recusada pelo Ministério da Cultura
"Achei que fosse mais forte; pretensão, né?", diz atriz, sobre crise nervosa que a deixou sem fala durante peça de teatro em 2007
DO ENVIADO AO RIO
Norma Bengell perdeu as
contas de quantas vezes foi detida durante a ditadura. "Quando não tinham mais ninguém
para prender, iam lá em casa."
Em 1971, exilou-se na França. Nos anos seguintes, alternou trabalhos no cinema e no
teatro, entre a Europa e o Brasil. Foi vista nos sets de Rogério
Sganzerla ("O Abismo"), Glauber Rocha ("A Idade da Terra")
e Walter Hugo Khouri ("Eros, o
Deus do Amor"). No palco,
atuou sob a direção de Patrice
Chéreau, figura central das artes cênicas francesas.
Na sequência, viria um hiato
teatral de mais de 20 anos. "A
gente não se afasta dos lugares.
São as pessoas que nos esquecem, não nos chamam mais."
Ela tenta espantar a mágoa
com um chiste. "Mando tomar
"Memoriol"."
A reconciliação deveria vir
em 2007, em "O Relato Íntimo
de Madame Shakespeare", testemunho ficcional da solidão
de Anne Hathaway, mulher do
dramaturgo inglês. Mas uma
crise nervosa a deixou sem fala
em cena e a afastou da peça
após quatro apresentações.
"Tive uma alta de pressão por
conta de uma perda violenta
[sua sócia e amiga íntima Sonia
Nercessian morreu de câncer].
Fui com o maior gás e desabei.
Me deu um branco. Ai, que vergonha!", diz a atriz, com lágrimas nos olhos. "Achei que fosse
mais forte. Pretensão, né?"
Também contribuiu para o
desequilíbrio emocional o imbróglio jurídico envolvendo a
prestação de contas de "O Guarani" (1996), longa-metragem
em que Norma acumulou os
papeis de produtora e diretora.
Fracasso de público e crítica, o
filme teve autorização do Ministério da Cultura (MinC) para captar, via leis de renúncia
fiscal, R$ 3,9 milhões. Levantou
R$ 2,99 milhões.
O MinC achou notas frias na
prestação de contas e passou o
caso ao Tribunal de Contas da
União, que também acusou retirada de "pró-labore" (quantia
que o produtor destina a si
mesmo pelo trabalho realizado) em valor superior ao permitido -e determinou a devolução de R$ 3,8 milhões.
"Não me importo"
A Justiça do Rio decretou a
indisponibilidade dos bens de
Norma, e ela foi indiciada pela
Polícia Federal por lavagem de
dinheiro, evasão de divisas e
apropriação indébita.
"Não me importo nem um
pouco. Tenho a consciência
limpa. Sei onde ponho meu nariz, de onde pego minhas coisas", afirma, voltando a se emocionar. "Seria incapaz de mexer
no que não é meu."
Segundo ela, o ministério
"implicou com uma nota dada
por uma pessoa que não tinha
pago ISS ou INSS, um "s" desses". Norma diz que, ao perceber que havia levantado mais
dinheiro do que precisaria, devolveu R$ 500 mil ao MinC.
Ao fim do projeto, restou à
produtora e diretora uma remuneração de R$ 17 mil. "Falei
"não é possível!". Era um trabalho de dez anos. Então, [integrantes da equipe] falaram que
eu tinha de me pagar. Aí, peguei
um dinheiro lá e botei no meu
pagamento. Não avisei ao
MinC, e isso não pode. Me dei
R$ 400 mil, porque os cineastas
ganham R$ 500 mil, R$ 800
mil, R$ 1 milhão."
Hoje, afirma Norma, um processo foi arquivado, dois foram
ganhos por ela e um está em
aberto. Seus bens estão bloqueados. "O advogado não me
cobra, sabe que estou dura."
Melancolia
Ela mora numa casa de dois
andares, com piscina, numa região nobre da capital fluminense. "Comprei essa casa muito
velhinha. Fui reformando aos
poucos. Não estou numa situação difícil de passar fome, mas
tenho de trabalhar para ganhar
dinheiro. O que eu roubei d'"O
Guarani" deve estar na Suíça,
né?", diz. "Se amanhã eu ganhar um Oscar, alguém vai falar: "E "O Guarani'?" É a única
mácula na minha carreira."
Já com as pernas "dormentes
como as de Winnie", a personagem coberta de terra até o pescoço que ela se prepara para encarnar em "Dias Felizes", Norma pede licença da entrevista
para ensaiar. "Depois, erro o
texto, e eles [o diretor Emílio di
Biasi e o produtor Alexandre
Brasil] brigam comigo", justifica, num lance de charme para
desanuviar a melancolia que se
fixou em seu olhar.
No segundo ato da peça de
Beckett, Winnie não mais alcança os objetos que até ali alimentaram sua tagarelice. Norma, de seu lado, abandona as
reminiscências cômicas sobre
colegas de sets e palcos no "segundo ato" da entrevista. Prefere as digressões sobre os sonhos em que a mãe a visita.
"Que estranho. Parece que
sempre tem alguém me olhando", diz a personagem, num dos
momentos preferidos da atriz.
"Deve ter alguém olhando por
mim, né, porque é tudo tão perigoso...", acrescenta Norma,
fora do texto. Quando a plateia
do teatro ouvir "terá sido mais
um dia feliz", já não saberá mais
quem fala.
(LUCAS NEVES)
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