São Paulo, terça-feira, 07 de março de 2006

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Após 33 anos de Globo, Lauro César Muniz ganha mais que o dobro na rival para criar "Cidadão Brasileiro"

Record será império, diz autor

LAURA MATTOS
DA REPORTAGEM LOCAL

Os cofres da TV da Igreja Universal estão abertos para a guerra contra a Globo. A estréia de "Cidadão Brasileiro", na próxima segunda, prova que as armas da Record não são mais de brinquedo.
O criador da primeira novela das oito da nova fase da emissora é Lauro César Muniz, 68, de "O Salvador da Pátria", "Roda de Fogo" e outros sucessos. Novelista do primeiro time da Globo, ele recebia um dos maiores salários da TV brasileira. A Record lhe ofereceu mais. Precisamente, duas vezes e meia o que ganhava, além de acréscimo a cada cinco pontos de audiência que "Cidadão Brasileiro" marcar.
Se a novela chegasse a 30,1 pontos, Muniz receberia R$ 1 milhão. Se batesse 35 pontos, R$ 1,5 milhão. É um ibope praticamente impossível, mas as cifras dão idéia de que dinheiro não é problema.
"Cidadão Brasileiro", de época, mistura três bem-sucedidas obras de Muniz dos anos 70, duas da Globo ("Escalada" e "O Casarão") e uma da Record ("Quarenta Anos Depois"). Com elenco de ex-globais -Lucélia Santos, Paloma Duarte, Gabriel Braga Nunes e outros-, tem orçamento digno de novela da Globo: R$ 300 mil por capítulo, em média.
Nesta entrevista exclusiva à Folha, o novelista conta por que saiu magoado da Globo, onde trabalhou por 33 anos, diz que "o monopólio da emissora é perigoso" e ainda critica o presidente Lula e o governador Geraldo Alckmin.
Ex-membro do Partido Comunista, o contratado do bispo Edir Macedo diz não acreditar em Deus e fala que as religiões servem para promover guerras.

 

Folha - Que diferença há entre a Record de 70, quando fez "As Pupilas do Senhor Reitor", e a de agora?
Lauro César Muniz -
Tudo era mais doméstico, intimista, dialogava-se facilmente com a direção, e as coisas se resolviam na amizade. Hoje, isso é impossível. Não há aquele calor humano, é um processo natural do crescimento.

Folha - Mas ainda tem, como diz, mais calor humano do que a Globo?
Muniz -
É mais afetiva do que a Globo que deixei, mas logo não será, porque a Record está crescendo rapidamente. Estou há um ano na emissora e já sinto diferença. O acesso ao comando era mais fácil. Não é negligência. É que eles estão atarefadíssimos na construção de um império. Isso vai virar um império de comunicação muito em breve. Quando cheguei à Globo, há 33 anos, as relações eram mais fáceis. Com o desenvolvimento, e principalmente após a saída do Boni [do comando, em 97], virou uma empresa de difícil diálogo, e me senti isolado.

Folha - O que "Cidadão Brasileiro" terá do Brasil de hoje?
Muniz -
O Brasil de hoje ficará presente em "Cidadão Brasileiro", mesmo a ação estando no passado. A crise de corrupção que o país vive ficará muito bem retratada em Guará de 1956.

Folha - Por que usar novelas dos anos 70 para criar "Cidadão"?
Muniz -
Estou tentando resgatar aquela maneira de fazer novela. Foi naquela época que implementamos a novela verdadeiramente brasileira, com autores excelentes como Dias Gomes, Janete Clair, Bráulio Pedroso. Era uma busca da realidade brasileira, da preocupação com personagens vinculados a um background social. A partir da década de 90, a telenovela se desviou para uma visão muito mais mercadológica. É preciso faturar, o sucesso é fazer o que o mercado aceita. Foi conseqüência das modificações sociais, da queda do império soviético.

Folha - A Record não deveria ser a sua chance de renovar as novelas?
Muniz -
Não vou fazer uma novela igual às da década de 70, mas apenas ter a mesma preocupação de inserir o personagem num universo político-social e não me ater apenas às peripécias que possam prender o telespectador. Os autores realmente se fecharam para qualquer possibilidade inovadora. Estão contando a mesma história e um copiando o outro. Eu também, de certa forma, estou um pouco acomodado trilhando um caminho que já trilhei. Mas agora na Record é preciso correr o mínimo de riscos, porque estamos implementando uma emissora que tem que dar certo para enfrentar o monopólio da Globo.

Folha - O sr. disse que o governo pressionou a Globo para que Sassá Mutema, de "Salvador da Pátria" (89), fosse modificado, já que estaria promovendo a imagem de Lula. E, cá entre nós, havia mesmo uma inspiração no candidato, não?
Muniz -
Tinha um pouco sim. Eu me sentia sob pressão. Até algumas pessoas do PT, que não tiveram paciência de esperar a virada de Sassá, reclamaram que ele era manipulado e achavam que eu era a favor do Collor. Mas Sassá ia se emancipar no processo. Eu não estava fazendo propaganda do Lula, mas tentando analisar a tomada de consciência de um homem do povo. Nem votei nele no primeiro turno, mas no Covas. Votei no Lula só no segundo.

Folha - O sr. não era ligado ao PT?
Muniz -
Nunca fui. Sou de esquerda [risos]. Meu último partido foi o Comunista, que deixei em 68, com o AI-5 [ato institucional nš 5, que endureceu a ditadura militar]. E aí passamos a ver a novela como uma arma para subliminarmente informar a população sobre o que acontecia no país.

Folha - Como seria o Sassá hoje?
Muniz -
Não sei se daria para fazer o Sassá hoje. Acho que ele teria um final trágico, e não um apoteótico como o da trama de 89. E a novela se chamaria "O Traidor da Pátria" [risos]. Estou preocupado, foi uma grande decepção, apesar de também não ter votado no Lula em 2002. Votei no Serra. E eu não votei errado, não [risos].

Folha - O sr. é ligado ao PSDB?
Muniz -
Não é questão partidária, mas de analisar o momento e buscar alguém com uma visão de mundo mais próxima à minha. E me parecia que Serra era mais indicado, embora o PSDB viesse de um segundo mandato bastante comprometido de FHC. Serra tem uma clareza que Lula nunca pareceu ter, até por problemas de escolaridade. A falta de escolaridade impede a pessoa de entrar em contato com a lógica. Quando você faz um curso superior, ela está em todas as disciplinas. Quem não faz é carente dessa lógica.

Folha - Então o sr. acha que Serra é mais de esquerda do que Lula?
Muniz -
Acho. Ele está mais aparelhado para analisar as necessidades do Brasil. O Lula não está.

Folha - Serra está mais aparelhado do que Geraldo Alckmin?
Muniz -
Ah, bem mais. Acho o Alckmin um chato, um pirulito, não, um picolé de Chuchu. Ele está atrapalhando o processo.


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