São Paulo, quarta-feira, 07 de março de 2007

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

Educação sentimental

Em entrevista à Folha, Antonio Cicero repete clichês e erra em sua interpretação sobre a modernidade

ESTRANHO E lamento que Antonio Cicero, um homem inteligente de quem li "Finalidades sem Fim", esteja disposto a assinar clichês. Aconteceu em entrevista à Folha, sábado passado.
Existem concórdias e discórdias, claro: Cicero tem razão ao falar do desprezo pela "democracia burguesa", comum a algumas esquerdas; não tem razão ao comparar uma democracia como a norte-americana (será uma "democracia burguesa"?) enfiando-a no mesmo saco de fanatismos tribais. Dizer que Bush é igual a Bin Laden pode fazer as delícias dos simples. Não deveria fazer as delícias de Cicero.
Mas minha maior discórdia com Cicero vem com sua interpretação da modernidade. Para Cicero, a "ofensiva reacionária" procura destruir a grande conquista da modernidade: um espaço de dúvida capaz de garantir uma ordem plural. A frase é bonita, sim, mas pressupõe uma pergunta: de que modernidade está Cicero a falar?
Não, com certeza, da modernidade inaugurada por Descartes, e onde a dúvida metódica rapidamente se converteu em dogma racionalista. Esse, aliás, é o traço distintivo do iluminismo continental, que para Cicero parece encerrar a conversa: essa capacidade do "tribunal da razão" aceitar, e só aceitar, o que pode ser racionalmente provado.
Não é preciso um curso de metafísica para concluir que nem tudo pode ser racionalmente provado. E que muitos dos nossos valores habitam o nevoeiro cético de que falava Montaigne. Existem aproximações à verdade. Não há, como diria La Mettrie, um "calculemus" que concede aos homens a cartilha para a construção do mundo.
Perguntei de que modernidade Cicero falava. Repito. E repito porque não existe uma modernidade, existem várias. E isso é particularmente importante em confronto com o texto, polêmico, de Renato Janine Ribeiro. O texto de Ribeiro sobre o assassínio brutal de uma criança é relevante por dois motivos. Primeiro, porque é um texto feito de dúvidas, não de certezas, ao contrário da dogmática politicamente correta de seus críticos. E, segundo, porque é um texto que formula a questão mais complexa na história do pensamento humano: que lugar têm os sentimentos nas nossas respostas morais?
Ao contrário do que Cicero imagina, essa questão é moderna e não deixa de ser impressionante como uma frase de Ribeiro ("Sentir com o outro não exige ter vivido pessoalmente a mesma experiência") é a idéia matricial com que Adam Smith inaugura a "Teoria dos Sentimentos Morais".
Aliás, não apenas Smith: Shaftesbury, Ferguson, Hume e a escola "iluminista" escocesa entenderam que a necessidade de combater o dogma não implicava jogar fora as "virtudes naturais" que são parte da vida em sociedade.
A razão não se basta a si própria. Os sentimentos também não. Uma comunidade moralmente decente será capaz de acomodar ambas as vozes. Caso contrário, o diálogo vira monólogo. De Robespierre a Mao, de Lênin a Hitler, a história recente do mundo foi a história desse monólogo.


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