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JOÃO PEREIRA COUTINHO
Educação sentimental
Em entrevista à Folha, Antonio Cicero repete clichês e erra em sua interpretação sobre a modernidade
ESTRANHO E lamento que Antonio Cicero, um homem inteligente de quem li "Finalidades sem Fim", esteja disposto a
assinar clichês. Aconteceu em entrevista à Folha, sábado passado.
Existem concórdias e discórdias,
claro: Cicero tem razão ao falar do
desprezo pela "democracia burguesa", comum a algumas esquerdas; não tem razão ao comparar
uma democracia como a norte-americana (será uma "democracia
burguesa"?) enfiando-a no mesmo
saco de fanatismos tribais. Dizer
que Bush é igual a Bin Laden pode
fazer as delícias dos simples. Não
deveria fazer as delícias de Cicero.
Mas minha maior discórdia com
Cicero vem com sua interpretação
da modernidade. Para Cicero, a
"ofensiva reacionária" procura
destruir a grande conquista da modernidade: um espaço de dúvida
capaz de garantir uma ordem plural. A frase é bonita, sim, mas pressupõe uma pergunta: de que modernidade está Cicero a falar?
Não, com certeza, da modernidade inaugurada por Descartes, e onde a dúvida metódica rapidamente
se converteu em dogma racionalista. Esse, aliás, é o traço distintivo
do iluminismo continental, que para Cicero parece encerrar a conversa: essa capacidade do "tribunal
da razão" aceitar, e só aceitar, o que
pode ser racionalmente provado.
Não é preciso um curso de metafísica para concluir que nem tudo
pode ser racionalmente provado. E
que muitos dos nossos valores habitam o nevoeiro cético de que falava Montaigne. Existem aproximações à verdade. Não há, como
diria La Mettrie, um "calculemus"
que concede aos homens a cartilha
para a construção do mundo.
Perguntei de que modernidade
Cicero falava. Repito. E repito porque não existe uma modernidade,
existem várias. E isso é particularmente importante em confronto
com o texto, polêmico, de Renato
Janine Ribeiro. O texto de Ribeiro
sobre o assassínio brutal de uma
criança é relevante por dois motivos. Primeiro, porque é um texto
feito de dúvidas, não de certezas,
ao contrário da dogmática politicamente correta de seus críticos. E,
segundo, porque é um texto que
formula a questão mais complexa
na história do pensamento humano: que lugar têm os sentimentos
nas nossas respostas morais?
Ao contrário do que Cicero imagina, essa questão é moderna e não
deixa de ser impressionante como
uma frase de Ribeiro ("Sentir com
o outro não exige ter vivido pessoalmente a mesma experiência")
é a idéia matricial com que Adam
Smith inaugura a "Teoria dos Sentimentos Morais".
Aliás, não apenas Smith: Shaftesbury, Ferguson, Hume e a escola
"iluminista" escocesa entenderam
que a necessidade de combater o
dogma não implicava jogar fora as
"virtudes naturais" que são parte
da vida em sociedade.
A razão não se basta a si própria.
Os sentimentos também não. Uma
comunidade moralmente decente
será capaz de acomodar ambas as
vozes. Caso contrário, o diálogo vira monólogo. De Robespierre a
Mao, de Lênin a Hitler, a história
recente do mundo foi a história
desse monólogo.
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