São Paulo, quarta-feira, 07 de março de 2007

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MARCELO COELHO

O caso Janine

Não é todo dia que um intelectual confessa achar pouco castigar com a pena de morte

COMENTO A polêmica em torno do artigo de Renato Janine Ribeiro, publicado no Mais! de 18/2. Ainda que previsível, a indignação provocada pelo seu texto me pareceu desmedida.
Não é todo dia, por certo, que um intelectual confessa achar "que é pouco" castigar com a pena de morte os assassinos de uma criança.
"Não paro de pensar que deveriam ter uma morte hedionda (...) Imagino suplícios medievais, aqueles cuja arte consistia em prolongar ao máximo o sofrimento, em retardar a morte".
Mas no mesmo artigo, depois desse chocante desabafo, Janine afirmou claramente: "Não consigo, do horror que sinto, deduzir políticas públicas, embora isso fosse desejável". Seria o caso de defender a pena de morte, a prisão perpétua, a redução da maioridade penal? "Não sei", escreveu Janine.
Os críticos mais inflamados não levaram em conta esse "parágrafo das dúvidas". Janine foi tomado como um defensor da pena de morte e da tortura medieval. Com muitos agravantes: trata-se de um filósofo, um professor de Ética na USP, e um "homem público", dado o fato de ser diretor da Capes.
Começo por essa última circunstância. Se o artigo tivesse sido escrito por um governador ou um coronel da PM, o caso seria bem diferente. Autoridades públicas têm a obrigação de separar o que é da ordem de seu sentimento subjetivo e o que pertence à esfera de sua ação prática. Cabe-lhes, de fato, "deduzir políticas públicas" de suas convicções.
Devem ademais calar-se, quando há o risco de que seus subordinados "deduzam" providências reais a partir dos sentimentos privados que tenham vontade de expressar. Mesmo se fosse numa conversa particular, um governador que dissesse "imaginar suplícios medievais" para punir criminosos estaria cometendo uma impropriedade gravíssima.
Mas um intelectual, mesmo se diretor da Capes, não é "homem público" nesse sentido. Sua função pública é discutir, levantar problemas. Muitas pessoas consideraram, entretanto, que Janine não deveria fazer desabafos; poderia dizer o que disse numa roda de amigos, não na esfera pública.
Acho equivocada essa opinião. Nada mais brasileiro do que tolerar, por exemplo, o machismo em piadinhas de botequim, para depois assumir pose politicamente corrreta em seminários e palestras.
E Janine não fez apenas um desabafo. Ele levantou um tema complicado: qual a relação entre o seu sentimento pessoal, feito de raiva e desejo de vingança, com sua opinião teórica a respeito da pena de morte ou da tortura?
A questão é importante, e merece ser discutida. É nesse ponto que discordo de Janine. Nossos sentimentos, dos quais cabe tratar sem hipocrisia, não têm como se traduzir em políticas públicas coerentes. Janine parece querer diminuir o espaço entre uma coisa e outra. Mas isso, a meu ver, tende a ser impossível.
Dou um exemplo. Janine pode querer, agora, que os assassinos de João Hélio sofram imensamente na prisão. Mas se aparecer no jornal uma descrição dos "suplícios" a que foram submetidos, imagino que a sensibilidade de Janine reagiria com o mesmo horror com que reagiu ao assassinato.
No artigo de domingo passado, rebatendo os críticos, Janine afirmou que "calar em público os sentimentos que se referem à vida pública induz à idéia do intelectual como quem pensa sem paixões, a esconder a face oculta de nossa comum humanidade".
Mas pensar é, a meu ver, pensar sem paixões. Pelo menos, resulta de uma paixão particular, feita de compromisso com a verdade, com a lógica, não do que há de mutável nas nossas disposições emocionais. As emoções do público, entretanto, voltaram-se contra Janine. Será que não se voltaram, na verdade, contra aquilo que todos nós sentimos dentro de nós mesmos? Nosso desejo de vingança deve ser calado: que Janine se cale, então...
E não apenas nosso desejo de vingança. Que seja reprimida, também, a sensação que temos de fraqueza, de imobilismo, de impotência diante da barbárie. Sem dúvida, aplicar de verdade as leis vigentes já seria uma grande coisa. Mas desconfiamos que dizer isso é chover no molhado, e que repetir pela milésima vez a defesa de leis que não funcionam pode muito bem traduzir-se em frieza e indiferença na prática.
Esse é o ponto em que Janine tocou, e que torna o seu texto difícil de ser suportado.


coelhofsp@uol.com.br

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