São Paulo, domingo, 07 de março de 2010

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Mônica Bergamo

bergamo@folhasp.com.br

Elas carregam o fardão

Rafael Andrade/Folha Imagem
Edia Van Steen segura o fardão da ABL ao lado do marido, o imortal Sábato Magaldi

Elas são a "retaguarda" dos imortais da Academia Brasileira de Letras. Estão sempre na casa pois, afinal, "uma coisa é muito importante: a presença da esposa"

Sábato Magaldi, 82, está na sala do apartamento com vista para o calçadão e a praia de Copacabana, no Rio. Quando o senhor entrou na Academia Brasileira de Letras? "Hum... Ô, Edla, você lembra quando eu..." Do quarto, a mulher com quem é casado há 32 anos, Edla Van Steen, 73, não espera o fim da pergunta: "Em 94!" Ele sorri: "Ela entende muito mais do que eu", diz ele à repórter Audrey Furlaneto. Entende de quê? "De tudo, de tudo."

 

Na cobertura do apartamento com o mar de Ipanema ao lado, Ruth Niskier, 65, senta-se em frente a uma das telas de Di Cavalcanti que tem em casa e tece elogios ao marido, Arnaldo Niskier, 74, membro da ABL há 26 anos: "Ele é o astro, eu fico só na retaguarda. Não... Retaguarda, não. Ao lado, caminhando junto".

 

Da biblioteca de 8.000 livros do apartamento em Copacabana, Rejane Godoy, 58, vai para a ABL de carona com o motorista que o marido, o imortal Domício Proença Filho, 73, tem à disposição. "Viver atrás de um homem não é uma coisa banal", diz. "O marido é imortal, mas a mulher dele é deste tempo. Está por trás, como suporte."

 

As mulheres dos imortais (dos homens, só dois são solteiros) acompanham os maridos no famoso chá das quintas, vão às palestras e conferências, conhecem grandes escritores e palpitam no voto. Com uma cadeira vaga na academia, a de José Mindlin, morto na semana passada, elas incluíram em sua rotina o ritual de receber os telegramas e administrar os telefonemas de candidatos. Mas não têm obrigações e possuem um só direito: terão o funeral e o enterro, no mausoléu da academia, pagos pela ABL.

 

"Sinceramente? Não é nada demais", diz Edla Van Steen, que, além de "levar o Sábato, esperar e voltar", é autora de 27 livros (de contos, romances, peças de teatro) e dirige oito coleções literárias. Nem todas, no entanto, são "acadêmicas".

 

Rejane Godoy, por exemplo, exerceu o magistério durante 20 anos, conheceu Domício Proença num curso e abandonou o doutorado em Porto Alegre para viver com ele no Rio. Hoje, colabora com pesquisas para os livros do marido e controla para que "as pessoas que limpam a casa não passem o aspirador de pó quando ele está no escritório". "Eu tinha umas desligadas que entravam com aquele bicho lá. Imagina?"
"Somos o casal mais banal do mundo", completa. "As pessoas perguntam: "Mas o que vocês falam no café da manhã?" Nós falamos as coisas mais banais. Essas coisas de intelectualidade rolam em outro espaço." Na ABL, ela já viu "coisas pitorescas". "Um sujeito disse para outro: "Olha, sua mulher estava falando muito alto hoje. Todo mundo estava vendo". Ele virou e falou assim: "Minha mulher é maior de idade. O senhor vá lá e fale para ela". Não vou dizer o nome, mas foram duas figuras conhecidíssimas."

 

A jornalista e escritora Cecília Costa, 58, casada com o imortal Ivan Junqueira, 75, revela: "No começo, era só gente dizendo: "Cecília, senta! Cecília, fala baixo!" E eu sou meio libertária". Cai na risada. "Não pode rir, acredita? [mais risos] Tinha uma conferência e alguém falou algo muito engraçado, e eu ri. Saiu até no jornal", lembra. As broncas são o menor problema: Cecília ganhou um prêmio da ABL (no valor de R$ 75 mil), com o livro "A Dama de Copas", quando seu marido presidia a academia. Foi demitida do jornal "O Globo", onde estava havia 28 anos, e recusou a bolada.

 

Na ABL, Cecília gosta é da possibilidade de "realizar a feminilidade". "Você tem que se arrumar um pouco mais, pode botar um cintilante. Mas tem de tudo: a que comprou roupa de "haute couture" e as que, como eu, são simples. Sou jornalista, né? Não vou de Chanel!"

 

É exatamente para os "frufrus" que Barbara Freitag, 68, não tem paciência. Nascida na Alemanha, veio para cá com sete anos e voltou ao país natal para a faculdade. Estudou com Adorno, expoente da Escola de Frankfurt, e chegou a dar aula na mesma universidade que ele. De volta, conheceu o diplomata Sergio Paulo Rouanet, 76. Se apaixonou. A cada mudança de posto dele, ia junto. Foram 18 travessias do Atlântico em 30 anos. E nada de "clubinho de mulheres de diplomatas".

 

"Talvez o meu convívio com o Rouanet imortal seja, eu diria, uma espécie de nota de pé de página. A vida da mulher de diplomata é bem mais complicada. Muita mulher se perde, vai para todos os chazinhos e festinhas. Uma amiga avisou: "Se você for a primeira vez, não se livra do assédio das mulheres". Elas fazem clubinho para levar filhos à escola, para ir a museu, fazer compras e não sei o quê." À ABL, Barbara vai pouco. "Às vezes, para aproveitar a carona, eu vou ao chazinho, dou "oi" para todo mundo que conheço." Ruth Niskier, que trabalha organizando palestras na joalheria H. Stern, não perde nada. "Coloco em primeiro lugar. Uma coisa é muito importante: a presença da esposa. Não tem essa coisa de: "Ah, eu vou estar reunida com amiguinhas"."

 

Beatriz Lajta, 72, mulher de Carlos Heitor Cony, 83, está "sempre correndo". "Em posses, solenidades, me dizem: "Você está sumida! Apareça!" Não sou exatamente uma mulher que, como eu vou dizer... Não faz parte do meu cotidiano aquela coisa: de tarde, ter aquele chá com amigas. De dondoca, eu não tenho nada", diz ela, que "administra" a vida de Cony.

 

Todas cuidam do fardão, bordado em ouro, de seu marido imortal (que custa entre R$ 35 mil e R$ 50 mil). "Coloco no closet um desumidificador. De vez em quando, boto no sol ao contrário, por causa do ouro", diz Ivelise Ferreira, 49, mulher do cineasta Nelson Pereira dos Santos, 81. "Os acadêmicos e as senhoras são inteligentes, irônicos. No início, eu dizia: "Ai, Nelson, achava que ia ser melhor você não entrar para a ABL". Pensava: "Nossa, como é que eu vou conversar com essas pessoas?'" Ivelise, então, descobriu que se conversa sobre tudo -exceto política. Edla Van Steen explica: "Tem acadêmico político... Presta atenção: o Sarney é acadêmico, e ele tá todo enrolado. É normal que não se toque no assunto. Vai falar o quê? Você já pensou?".

 

"É um clube de velhinhos, mas que é legal. Por que não?", continua Edla. "E as mulheres têm que se dar umas com as outras. Porque, se tiver uma louca lá, enchendo o saco, não vai dar. Se a mulher for um horror, pesa e muito."


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