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ANÁLISE
Nas entrelinhas de um Oscar atípico
Apesar de ter grandes longas em competição neste ano, premiação de melhor filme continua limitada e deixa de fora da disputa alguns fortes candidatos
WALTER SALLES
ESPECIAL PARA A FOLHA
Talvez o Oscar mais emblemático dos últimos dez anos.
Em jogo, que tipo de cinema teremos no futuro. Há visões colidentes tanto na categoria que
os norte-americanos chamam
de principal quanto no gueto do
filme estrangeiro.
A oposição mais reveladora
acontece entre "Avatar" e
"Guerra ao Terror" ("The Hurt
Locker"). Primeira evidência:
hoje, é mais fácil financiar um
filme de US$ 500 milhões em
Hollywood do que outro de
US$ 11 milhões, sobre a Guerra
do Iraque. É o oposto do que teria acontecido na década de 70,
durante os anos Nixon e a
Guerra do Vietnã.
Com a implosão da maioria
das produtoras e distribuidoras
de filmes independentes nos
EUA, o longa de Kathryn Bigelow só se concretizou graças ao
aporte de um coprodutor francês. Não existe mais nos EUA
financiamento para um filme
com as características de
"Guerra ao Terror" (tema polêmico, ausência de estrelas, filmagem em super-16).
Tudo opõe "Guerra ao Terror" e "Avatar": a imagem granulada do primeiro e a imagem
sintética e digital em 3D do segundo, o desencanto humanístico do filme de Bigelow e o heroicismo de Cameron, a inutilidade versus a premência da
guerra. Mas é talvez no entendimento de quem é o povo "invadido" que reside a maior diferença: Bigelow o vê como capaz
de travar uma resistência autônoma. Já os Na'vis necessitam
da liderança de um marine norte-americano para combaterem "o mal". Os bons (e indefesos) selvagens de Rousseau não estão longe.
Outra evidência trazida pelo
Oscar 2010: se alguém ainda tinha dúvidas da importância
dos festivais e da crítica especializada, "Guerra ao Terror"
veio para enterrá-las. Sem a
forte impressão que causou em
Veneza e Toronto, o filme de
Bigelow teria possivelmente ficado, como tantos outros filmes independentes norte-americanos, nas prateleiras.
Um único distribuidor se interessou em lançar o filme nos Estados Unidos.
No Brasil, também sintomaticamente, a falta de "estrelas"
(e de visão) levou-o diretamente para um lançamento em
DVD, até ser resgatado pelas
nove indicações ao Oscar e ganhar tardiamente a tela grande.
Mas foram as vitórias nos
prêmios dados pelas associações de críticos de Nova York e
Los Angeles que deram a
"Guerra ao Terror" a sua plena dimensão.
A partir daí, começou uma
avalanche que culminou com
os prêmios de melhor filme e
direção no Bafta, o Oscar inglês.
Resta a pergunta: um filme na
contramão da atual safra cinematográfica dos estúdios norte-americanos poderá ganhar o
Oscar?
Não menos significativo:
nem mesmo a ampliação do
número de cinco para dez longas selecionados na categoria
de melhor filme permitiu a inclusão de dois filmes "estrangeiros" excepcionais nesse clube. "A Fita Branca", obra-prima
de Haneke e para muitos o melhor filme do ano, e "O Profeta",
o excelente filme de Jacques
Audiard, mereciam ter ultrapassado o território restrito do
melhor filme estrangeiro. Só a
marcante fotografia de Christian Berger para "A Fita Branca" foi reconhecida.
Aí residem, talvez, as maiores
injustiças desta versão do Oscar: a não inclusão de Haneke
como melhor diretor e roteirista e de Audiard na categoria de
melhor roteiro original. No caso de "A Fita Branca", Haneke
recebeu ajuda decisiva do roteirista Jean Claude Carrière. O
ceticismo luminoso deste amplia a ressonância do filme e, de
quebra, engrandece a obra de
Haneke. A inocência do jovem
professor que narra a história
torna aceitável a perda de inocência das crianças do filme.
Magistral.
Aconteça o que acontecer, o
Oscar 2010 ficará na história
graças ao número de grandes
filmes em competição, em oposição à mediocridade da edição
passada, vencida por um forte
candidato a pior filme da década ("Quem Quer Ser um Milionário?"). 2010 será lembrado
por sua excelente safra. Além
dos filmes de Bigelow, de Haneke e de Audiard, há também o
melhor filme de Tarantino,
"Bastardos Inglórios", sério
candidato ao prêmio máximo
da Academia, com ótimas atuações e uma refinada homenagem a Sergio Leone no alargamento do tempo e do espaço;
um irmãos Coen de grande originalidade e uma excelente animação de Wes Anderson.
Em meio à crise salvaram-se,
para a surpresa de muitos, os
filmes mais essenciais e autorais. E mesmo se "Avatar" vier a
levar a estatueta mais cobiçada
da noite, ninguém poderá negar que o Oscar terá sido dado a
um filme de autor.
Quem mais teria a capacidade e a obsessão necessárias para inventar aquele universo e
torná-lo crível, se não James
Cameron?
WALTER SALLES é cineasta, diretor de "Diários de Motocicleta" e "Linha de Passe", entre
outros
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