São Paulo, sábado, 07 de abril de 2001

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RESENHA DA SEMANA
Suspense absurdo

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

Dizer hoje que um texto literário é pós-moderno compromete não só a obra e sua atualidade, mas o crítico e sua reputação.
Por ironia do destino, a definição que, nas artes, foi cunhada para dar conta justamente de uma hiperatualidade, por oposição a uma modernidade ultrapassada, acabou associada a uma série de maneirismos datados, circunscritos a um período muito particular da produção artística do final do século 20.
Dizer que uma obra é pós-moderna hoje não significa muito além de que se trata de coisa do passado. Graças à sua abrangência e ao seu uso indiscriminado, o conceito que pretendia dissociar a idéia de modernidade do presente perdeu o sentido, desgastou-se num instante como um artigo de moda.
"Caçando Carneiros", do japonês Haruki Murakami, 52, é um livro pós-moderno. Publicado em 1982, o romance ilustra ao pé da letra alguns dos traços mais comumente associados ao "gênero", a começar pelas constantes referências à cultura pop, citações espalhadas pelo narrador ao longo da história para demarcar as fronteiras do seu mundo, um recurso típico da literatura do início dos anos 80.
Nesse sentido, "Caçando Carneiros" é um livro datado. Mas seria injusto criticá-lo pelo que lhe é secundário. Seu principal interesse vem de outros aspectos. Logo nos primeiros capítulos do romance, o narrador diz: "Não tenho certeza absoluta de estar consciente". Embora a atmosfera ambígua entre sonho e realidade não fosse novidade ou exclusividade do final do século 20, ela também acabou servindo para caracterizar a "pós-modernidade" das obras, na falta de marcas mais específicas.
Em Murakami essa ambiguidade se estende até as citações, justificando o que pode haver de frivolidade pela suposição de uma ironia subliminar e de um humor blasé. Há um parentesco entre essa literatura e a publicidade, ainda que numa relação de aparente oposição. Quando o autor cita grifes e marcas, sempre pode recorrer à ironia para justificar-se como crítica. A eventual afetação vem daí, do fato de o fetiche ter para essa literatura um valor fundamental. O fetiche que é a suposição ou a vontade de infundir nas coisas um sentido que elas não têm.
Por outro lado, Murakami recusa qualquer interpretação simbólica da ambiguidade surrealista do seu texto. A história que narra é absurda, mas o leitor a acompanha, com a maior atenção e expectativa, como se estivesse lendo um romance de suspense realista. "De um modo geral, sua história é quase inacreditável, de tão boba. Mas, contada por você, soa verídica, não sei por quê. Se eu disser a alguém o que me aconteceu hoje, tenho certeza de que ninguém acreditará em mim. (...) De um modo geral ela é estupidamente inverossímil, mas coerente nos pequenos detalhes, os quais no fim se ajustam perfeitamente. E isso me faz sentir mal."
O jogo de Murakami, e o maior interesse deste romance, é fazer o leitor acreditar, a despeito dos maneirismos de época e do mais completo absurdo da história, no lado romanesco da narrativa, igualando sonho e realidade. E levá-lo a se sentir perturbado pela constatação de que os conteúdos (o que é verdadeiro ou o que é falso) pouco importam.
"Caçando Carneiros" conta a história de um jovem publicitário que acaba decifrando a lógica esotérica por trás de uma engrenagem do mal, que envolve uma organização criminosa, os sistemas financeiro e de informação do Japão do pós-guerra, um político de direita e... um obscuro carneiro, num misto de gibi, romance policial e conto de fantasmas.
A história é um disparate cujo absurdo já se evidencia pela antinomia do título: caçar carneiros. O pós-modernismo de Murakami é desconstrutivista. É como se o autor tivesse aplicado à estrutura policial e às artimanhas do suspense um conteúdo estapafúrdio para provar que o que conta é o jogo a despeito dos significados.
Decorre daí não só o humor blasé e a ironia, mas um certo tipo de cinismo em que os conteúdos perdem o valor intrínseco. O único problema é quando, ao final, o autor decide por fim manifestar os autênticos sentimentos e as emoções do narrador. E o que escreve é tão tolo quanto tudo o que até então tinha sido tratado sob a ambiguidade distanciada da ironia.



Caçando Carneiros
Hitsuji o Meguru Boken
   
Autor: Haruki Murakami
Tradução: Leiko Gotoda
Editora: Estação Liberdade
Quanto: R$ 28 (336 págs.)




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