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RESENHA DA SEMANA
Suspense absurdo
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
Dizer hoje que um texto literário é pós-moderno
compromete não só a obra e sua
atualidade, mas o crítico e sua
reputação.
Por ironia do destino, a definição que, nas artes, foi cunhada
para dar conta justamente de
uma hiperatualidade, por oposição a uma modernidade ultrapassada, acabou associada a
uma série de maneirismos datados, circunscritos a um período
muito particular da produção
artística do final do século 20.
Dizer que uma obra é pós-moderna hoje não significa muito
além de que se trata de coisa do
passado. Graças à sua abrangência e ao seu uso indiscriminado,
o conceito que pretendia dissociar a idéia de modernidade do
presente perdeu o sentido, desgastou-se num instante como
um artigo de moda.
"Caçando Carneiros", do japonês Haruki Murakami, 52, é
um livro pós-moderno. Publicado em 1982, o romance ilustra
ao pé da letra alguns dos traços
mais comumente associados ao
"gênero", a começar pelas constantes referências à cultura pop,
citações espalhadas pelo narrador ao longo da história para demarcar as fronteiras do seu
mundo, um recurso típico da literatura do início dos anos 80.
Nesse sentido, "Caçando Carneiros" é um livro datado. Mas
seria injusto criticá-lo pelo que
lhe é secundário. Seu principal
interesse vem de outros aspectos. Logo nos primeiros capítulos do romance, o narrador diz:
"Não tenho certeza absoluta de
estar consciente". Embora a atmosfera ambígua entre sonho e
realidade não fosse novidade ou
exclusividade do final do século
20, ela também acabou servindo
para caracterizar a "pós-modernidade" das obras, na falta de
marcas mais específicas.
Em Murakami essa ambiguidade se estende até as citações,
justificando o que pode haver de
frivolidade pela suposição de
uma ironia subliminar e de um
humor blasé. Há um parentesco
entre essa literatura e a publicidade, ainda que numa relação
de aparente oposição. Quando o
autor cita grifes e marcas, sempre pode recorrer à ironia para
justificar-se como crítica. A
eventual afetação vem daí, do fato de o fetiche ter para essa literatura um valor fundamental. O
fetiche que é a suposição ou a
vontade de infundir nas coisas
um sentido que elas não têm.
Por outro lado, Murakami recusa qualquer interpretação
simbólica da ambiguidade surrealista do seu texto. A história
que narra é absurda, mas o leitor
a acompanha, com a maior
atenção e expectativa, como se
estivesse lendo um romance de
suspense realista. "De um modo
geral, sua história é quase inacreditável, de tão boba. Mas,
contada por você, soa verídica,
não sei por quê. Se eu disser a alguém o que me aconteceu hoje,
tenho certeza de que ninguém
acreditará em mim. (...) De um
modo geral ela é estupidamente
inverossímil, mas coerente nos
pequenos detalhes, os quais no
fim se ajustam perfeitamente. E
isso me faz sentir mal."
O jogo de Murakami, e o
maior interesse deste romance,
é fazer o leitor acreditar, a despeito dos maneirismos de época
e do mais completo absurdo da
história, no lado romanesco da
narrativa, igualando sonho e
realidade. E levá-lo a se sentir
perturbado pela constatação de
que os conteúdos (o que é verdadeiro ou o que é falso) pouco
importam.
"Caçando Carneiros" conta a
história de um jovem publicitário que acaba decifrando a lógica esotérica por trás de uma engrenagem do mal, que envolve
uma organização criminosa, os
sistemas financeiro e de informação do Japão do pós-guerra,
um político de direita e... um
obscuro carneiro, num misto de
gibi, romance policial e conto de
fantasmas.
A história é um disparate cujo
absurdo já se evidencia pela antinomia do título: caçar carneiros. O pós-modernismo de Murakami é desconstrutivista. É como se o autor tivesse aplicado à
estrutura policial e às artimanhas do suspense um conteúdo
estapafúrdio para provar que o
que conta é o jogo a despeito dos
significados.
Decorre daí não só o humor
blasé e a ironia, mas um certo tipo de cinismo em que os conteúdos perdem o valor intrínseco. O único problema é quando,
ao final, o autor decide por fim
manifestar os autênticos sentimentos e as emoções do narrador. E o que escreve é tão tolo
quanto tudo o que até então tinha sido tratado sob a ambiguidade distanciada da ironia.
Caçando Carneiros
Hitsuji o Meguru Boken
Autor: Haruki Murakami
Tradução: Leiko Gotoda
Editora: Estação Liberdade
Quanto: R$ 28 (336 págs.)
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