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NELSON ASCHER
A destruição de Bagdá
O bombardeio de Bagdá
começou no dia 30 de janeiro. Os invasores haviam sido recebidos de braços abertos pela população xiita dos subúrbios situados fora das muralhas, a leste da
cidade. Sem que o líder dos defensores, que apoiava os sunitas, desconfiasse de nada, seu número
dois, um xiita que o detestava por
ter perseguido seus correligionários e que queria tomar-lhe o lugar, já havia entrado em contato
com o inimigo, comunicando-lhe
secretamente os pontos fracos das
linhas de defesa.
Quando, em menos de duas semanas, a cidade caiu, o comandante supremo das forças invasoras ordenou seu saque. O fogo
consumiu palácios e mesquitas.
A maioria da população foi
massacrada. Falou-se depois em
algo entre 800 mil e 2 milhões de
mortos. Embora a cifra seja exagerada, o Exército vitorioso precisou abandonar seus acampamentos devido ao cheiro dos cadáveres. Isso aconteceu em 1258.
O pior desastre sofrido pela antiga capital do Califado (o centro
espiritual do mundo islâmico de
então) não foi provocado por europeus conduzindo uma Cruzada. Os danos causados ao islã por
dois séculos de guerra com a cristandade empalidecem diante da
devastação trazida pelos mongóis. O comandante que saqueou
Bagdá, Hulegu, era neto de Gêngis Khan, o guerreiro nômade
que, unificando as tribos de um
povo relativamente obscuro da
Ásia Central, lançou, a partir do
início do século 13, as bases do
maior império territorial que
existiu. Seus filhos e netos tomaram quase toda a Eurásia, do litoral da China à bacia do Danúbio.
Suas hordas levaram destruição
ao Oriente Médio e às costas do
Adriático. E suas duas tentativas
de ocupar o Japão fracassaram
apenas por causa do tufão que,
destruindo as armadas invasoras,
foi celebrado pelos japoneses como "Kamikaze" (Vento Sagrado).
A chave do imperialismo mongólico era a estepe: uma longa faixa contínua de planícies que, propícia à pastagem, vai da Manchúria até a Hungria. Nesse terreno,
que o poeta polonês Adam Mickiewicz chamou de "oceano sem
água", os nômades se moviam
tão rápida e facilmente quanto os
vikings no mar. Povos pastoris
que eram, eles levaram à perfeição as artes da montaria numa
sociedade em que todo homem
adulto era um guerreiro e cada
qual alternava entre pelo menos
cinco cavalos. Sua principal arma
era um arco pequeno, mas preciso
e possante, que, mesmo montados, disparavam ininterruptamente em todas as direções.
A grande inovação de Gêngis
Khan foi organizatória: não houve Exército como o seu antes da
"Grande Armée", de Napoleão.
Exímio planejador, ele surgia
com tropas nos lugares mais inesperados e cercava completamente
os adversários sem que estes o
percebessem. Seus descendentes,
como Kubilai, o imperador da
China de que fala Marco Polo, ou
o próprio Hulegu, fundador da
dinastia dos Il-Khans da Pérsia,
herdaram suas habilidades.
Entre as virtudes de seu império, que logo se fragmentou em diversos reinos hereditários, achava-se uma visão do mundo que,
surpreendentemente moderna e
pragmática, tolerava todas as religiões e privilegiava o comércio.
Mesmo assim, o caráter dessas
conquistas nunca deixou de ser
essencialmente predatório, e todas as partes da Eurásia atingidas por elas sofreram tantos danos demográficos, econômicos e
sociais que se tornaram, em seguida, presas fáceis para a única
região que a geografia e o acaso
pouparam a seus horrores: a Europa ocidental.
O islã, desde seu surgimento no
século 7º na atual Arábia Saudita, mostrara-se não só dinâmico e
expansionista como também capaz de superar em quase tudo, até
mesmo militarmente, o vizinho
europeu. O Oriente Médio e o
norte da África que hoje, com a
península Arábica, constituem
seu epicentro, haviam previamente pertencido ao Império Romano e estiveram entre os primeiros centros do cristianismo.
O sucesso ali dos continuadores
de Muhammad sugere que, na
disputa entre duas civilizações rivais, nada garantia de antemão a
vitória ocidental. O que rompeu o
equilíbrio instável entre ambas
foi a conquista mongol, que culminou justamente com a destruição de Bagdá.
Há quem ainda pense que a
guerra total é uma criação do
Ocidente moderno. O historiador
árabe Ibn Khatir (cujo trecho traduzo, via Bernard Lewis, do inglês) ilustra uma realidade diferente: "Eles atacaram a cidade e
mataram todos os que puderam,
homens, mulheres e crianças, os
velhos, os de meia-idade e os jovens. Muitos se esconderam nos
poços, latrinas e esgotos, onde ficaram dias sem sair. Muita gente
se trancou dentro dos "caravanseras" (abrigos públicos de caravanas). Quando os mongóis entraram, derrubando ou queimando
as portas, os que lá estavam fugiram escada acima e foram mortos nos telhados, de onde seu sangue jorrou pelas calhas até as
ruas. "Pertencemos a Alá e é a ele
que retornamos" (Alcorão, 2, 156).
O mesmo sucedeu nas mesquitas, pequenas e grandes, e nos
conventos dos dervixes. Ninguém
escapou a eles, salvo os "dhimmis"
(cidadãos de segunda classe tolerados pelo islã) judeus e cristãos
ou aqueles que se refugiaram nas
casas destes e do vizir Ibn al-"Alqami, o xiita, bem como um grupo de mercadores que obtiveram
um salvo-conduto após pagar-lhes uma grande quantia pela sua
própria segurança e pela de sua
propriedade. E Bagdá, que havia
sido a mais civilizada das cidades, converteu-se em ruínas habitadas por algumas poucas pessoas
aterrorizadas, famintas e reduzidas à irrelevância e à miséria".
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