UOL


São Paulo, segunda-feira, 07 de abril de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

NELSON ASCHER

A destruição de Bagdá

O bombardeio de Bagdá começou no dia 30 de janeiro. Os invasores haviam sido recebidos de braços abertos pela população xiita dos subúrbios situados fora das muralhas, a leste da cidade. Sem que o líder dos defensores, que apoiava os sunitas, desconfiasse de nada, seu número dois, um xiita que o detestava por ter perseguido seus correligionários e que queria tomar-lhe o lugar, já havia entrado em contato com o inimigo, comunicando-lhe secretamente os pontos fracos das linhas de defesa.
Quando, em menos de duas semanas, a cidade caiu, o comandante supremo das forças invasoras ordenou seu saque. O fogo consumiu palácios e mesquitas.
A maioria da população foi massacrada. Falou-se depois em algo entre 800 mil e 2 milhões de mortos. Embora a cifra seja exagerada, o Exército vitorioso precisou abandonar seus acampamentos devido ao cheiro dos cadáveres. Isso aconteceu em 1258.
O pior desastre sofrido pela antiga capital do Califado (o centro espiritual do mundo islâmico de então) não foi provocado por europeus conduzindo uma Cruzada. Os danos causados ao islã por dois séculos de guerra com a cristandade empalidecem diante da devastação trazida pelos mongóis. O comandante que saqueou Bagdá, Hulegu, era neto de Gêngis Khan, o guerreiro nômade que, unificando as tribos de um povo relativamente obscuro da Ásia Central, lançou, a partir do início do século 13, as bases do maior império territorial que existiu. Seus filhos e netos tomaram quase toda a Eurásia, do litoral da China à bacia do Danúbio. Suas hordas levaram destruição ao Oriente Médio e às costas do Adriático. E suas duas tentativas de ocupar o Japão fracassaram apenas por causa do tufão que, destruindo as armadas invasoras, foi celebrado pelos japoneses como "Kamikaze" (Vento Sagrado).
A chave do imperialismo mongólico era a estepe: uma longa faixa contínua de planícies que, propícia à pastagem, vai da Manchúria até a Hungria. Nesse terreno, que o poeta polonês Adam Mickiewicz chamou de "oceano sem água", os nômades se moviam tão rápida e facilmente quanto os vikings no mar. Povos pastoris que eram, eles levaram à perfeição as artes da montaria numa sociedade em que todo homem adulto era um guerreiro e cada qual alternava entre pelo menos cinco cavalos. Sua principal arma era um arco pequeno, mas preciso e possante, que, mesmo montados, disparavam ininterruptamente em todas as direções.
A grande inovação de Gêngis Khan foi organizatória: não houve Exército como o seu antes da "Grande Armée", de Napoleão. Exímio planejador, ele surgia com tropas nos lugares mais inesperados e cercava completamente os adversários sem que estes o percebessem. Seus descendentes, como Kubilai, o imperador da China de que fala Marco Polo, ou o próprio Hulegu, fundador da dinastia dos Il-Khans da Pérsia, herdaram suas habilidades.
Entre as virtudes de seu império, que logo se fragmentou em diversos reinos hereditários, achava-se uma visão do mundo que, surpreendentemente moderna e pragmática, tolerava todas as religiões e privilegiava o comércio. Mesmo assim, o caráter dessas conquistas nunca deixou de ser essencialmente predatório, e todas as partes da Eurásia atingidas por elas sofreram tantos danos demográficos, econômicos e sociais que se tornaram, em seguida, presas fáceis para a única região que a geografia e o acaso pouparam a seus horrores: a Europa ocidental.
O islã, desde seu surgimento no século 7º na atual Arábia Saudita, mostrara-se não só dinâmico e expansionista como também capaz de superar em quase tudo, até mesmo militarmente, o vizinho europeu. O Oriente Médio e o norte da África que hoje, com a península Arábica, constituem seu epicentro, haviam previamente pertencido ao Império Romano e estiveram entre os primeiros centros do cristianismo.
O sucesso ali dos continuadores de Muhammad sugere que, na disputa entre duas civilizações rivais, nada garantia de antemão a vitória ocidental. O que rompeu o equilíbrio instável entre ambas foi a conquista mongol, que culminou justamente com a destruição de Bagdá.
Há quem ainda pense que a guerra total é uma criação do Ocidente moderno. O historiador árabe Ibn Khatir (cujo trecho traduzo, via Bernard Lewis, do inglês) ilustra uma realidade diferente: "Eles atacaram a cidade e mataram todos os que puderam, homens, mulheres e crianças, os velhos, os de meia-idade e os jovens. Muitos se esconderam nos poços, latrinas e esgotos, onde ficaram dias sem sair. Muita gente se trancou dentro dos "caravanseras" (abrigos públicos de caravanas). Quando os mongóis entraram, derrubando ou queimando as portas, os que lá estavam fugiram escada acima e foram mortos nos telhados, de onde seu sangue jorrou pelas calhas até as ruas. "Pertencemos a Alá e é a ele que retornamos" (Alcorão, 2, 156).
O mesmo sucedeu nas mesquitas, pequenas e grandes, e nos conventos dos dervixes. Ninguém escapou a eles, salvo os "dhimmis" (cidadãos de segunda classe tolerados pelo islã) judeus e cristãos ou aqueles que se refugiaram nas casas destes e do vizir Ibn al-"Alqami, o xiita, bem como um grupo de mercadores que obtiveram um salvo-conduto após pagar-lhes uma grande quantia pela sua própria segurança e pela de sua propriedade. E Bagdá, que havia sido a mais civilizada das cidades, converteu-se em ruínas habitadas por algumas poucas pessoas aterrorizadas, famintas e reduzidas à irrelevância e à miséria".



Texto Anterior: Disco/lançamento: MPB rende tributo misto a "doutor do baião"
Próximo Texto: MAC, 40, convida para o banquete
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.