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ANTONIO CICERO
A controvérsia do multiculturalismo
Descartes relativiza as diferentes culturas a partir de um ponto de vista aberto a todas elas
EMBORA POUCO conhecida no
Brasil, uma das personagens
mais interessantes do nosso
tempo é, sem dúvida, Ayaan Hirsi
Ali. Tendo nascido em 1969 na Somália (onde foi, quando criança,
submetida a uma clitorectomia), ela,
ainda menina, emigrou com a família para o Quênia, onde estudou em
escola de língua inglesa e, sob a influência de professores e colegas,
acabou por se tornar fundamentalista islâmica.
Em 1992, tendo sido dada pelo pai
em casamento a um parente que habitava no Canadá, Hirsi Ali passou
-a caminho desse país- pela Holanda, onde pediu e obteve asilo político, aprendeu holandês, estudou
ciência política na Universidade de
Leyden e participou ativamente, por
um tempo determinado, da política
holandesa.
Em 2002, Hirsi Ali renunciou ao
islã e se declarou atéia. Tendo, a partir de então, publicado inúmeros artigos, proferido conferências e participado de debates em que fez sérias
críticas ao islã, e mesmo ao profeta
Maomé e ao Alcorão, ela foi diversas
vezes ameaçada de morte.
Hirsi Ali escreveu também o roteiro do filme "Submissão", sobre mulheres muçulmanas, de Theo Van
Gogh, assassinado em Amsterdã por
um radical islamista que, no peito da
vítima, pregou com uma faca um bilhete em que dizia, entre outras coisas: "Hirsi Ali, você será despedaçada pelo Islã". Ela hoje mora nos Estados Unidos.
Em artigo que acabou provocando
uma grande polêmica, inicialmente
na internet e, em seguida, em vários
jornais dos Estados Unidos e da Europa, o historiador e professor em
Oxford Timothy Garton Ash descreve Hirsi Ali nas seguintes palavras,
ao mesmo tempo irônicas e paternalistas: "Tendo sido na juventude, sob
a influência de um professor inspirado, tentada pelo fundamentalismo islâmico, Ayaan Hirsi Ali é agora
uma corajosa, franca e levemente
simplória fundamentalista do Iluminismo".
A formulação de Ash implica que
ela tenha simplesmente trocado de
fundamentalismos e, no limite, que
o islamismo equivale ao Iluminismo: convicção multiculturalista que
reaparece adiante, quando ele afirma que, se o iluminista quiser convencer o islamista argumentando
que a sua fé se baseia na razão, o islamista poderá responder que a dele
se baseia na verdade: e ei-los empatados.
A tese de Ash é insustentável. Para
comprová-lo, considere-se o ponto
de vista a partir do qual ele está a
descrever esse impasse. Necessariamente, trata-se de um ponto de vista
exterior ao de qualquer um dos dois
antagonistas; é um ponto de vista
que, sendo sobre os antagonistas,
nem se identifica com nenhum deles em particular, nem deixa de
compreender cada um deles isoladamente e ambos em conjunto. Ora,
esse é precisamente o ponto de vista
do Iluminismo: o ponto de partida
do pensamento moderno.
Montaigne, por exemplo, quando,
na Renascença, compara favoravelmente os índios antropófagos brasileiros com os cristãos europeus, diz
que podemos chamar os canibais de
"bárbaros" "tendo em vista as regras
da razão, mas não tendo em vista a
nós mesmos, que os superamos em
toda espécie de barbárie".
Em outras palavras, ele fala de um
ponto de vista que é não só exterior
ao da cultura dos índios, mas exterior também ao da cultura cristã em
que fora criado: por isso ele é capaz
de criticar essa cultura. E esse ponto
de vista é, segundo Montaigne, o das
"regras da razão", ou, simplesmente,
o da razão.
Descartes apenas radicaliza esse
ponto de vista, ao observar que
"aqueles que têm sentimentos muito contrários aos nossos nem por isso são bárbaros ou selvagens, mas
que muitos usam, tanto ou mais que
nós, da razão [...] e um mesmo homem, com seu mesmo espírito, sendo nutrido desde a infância entre
franceses ou alemães, torna-se diferente do que seria, se tivesse sempre
vivido entre chineses ou canibais".
Descartes está aqui, nada mais,
nada menos, relativizando as diferentes culturas, a partir de um ponto
de vista que não pertence a nenhuma cultura particular, mas que pode
ser aberto por e para qualquer ser
humano pertencente a qualquer
uma delas: o ponto de vista da razão,
do Iluminismo, da modernidade.
O reconhecimento universal desse ponto de vista, que é logicamente
exterior, anterior e superior a qualquer cultura ou religião particular, é
a condição da coexistência pacífica
de todos, num mundo cada vez menor. É por isso que Ash está errado,
ao colocá-lo no mesmo nível que o
ponto de vista de uma religião particular, tal como o islamismo.
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