São Paulo, quarta-feira, 07 de abril de 2010

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MARCELO COELHO

Sem moedinha, nada feito


O jogo entre o caráter e as circunstâncias faz a graça da peça "A Alma Boa de Setsuan"


A PRIMEIRA obrigação do teatro hoje em dia (quem me disse foi um profissional do ramo) é não encher a paciência. "A Alma Boa de Setsuan", peça de Bertolt Brecht, continua em cartaz no Tuca, e consegue bem mais do que isso. Só fui ver agora, no final de março, pensando que estava numa das últimas apresentações. Engano: o espetáculo dirigido por Marco Antônio Braz foi prorrogado até junho. Não é para menos. Há muito tempo, eu não ficava tão feliz de ir ao teatro e, pelas reações do público, eu não era o único a se sentir assim. Denise Fraga tem o talento incomparável de parecer absolutamente natural e popular nas reações do rosto e nas inflexões da voz sem perder o senso do gesto estilizado, do puro "teatralismo" da expressão.

Essa mistura de espontaneidade doméstica, de intimidade de cabeleireiro, com o poder de criar tempo e espaço próprios dentro do palco é, provavelmente, o que faz Denise Fraga passar da TV para o teatro sem que se sinta nenhuma quebra no seu modo de atuar. Mas ela não é a única a se mostrar exultante pelo mero fato de estar em cena. Ary França acentua com muita graça o cinismo da história, enquanto uma sequência deliciosa de rufiões, comadres interesseiras, mendigos e autoridades tenta se aproveitar da boa prostituta Chen Tê, vivida por Denise Fraga.
A palhaçada de alguns momentos faz com que "A Alma Boa de Setsuan" pareça até teatro infantil -mas a peça de Brecht se encarrega de liquidar com qualquer possibilidade de ensinamento edificante. A província de Setsuan vive na miséria. Um deus aparece, procurando uma pessoa de bom coração. A prostituta Chen Tê é a escolhida e recebe um gordo prêmio em dinheiro.
Aí é que aparecem os problemas. Todo mundo quer ajuda, e o dinheiro recebido não daria para contentar ninguém. Paro de contar a história e pulo para a conclusão: onde há miséria, diz Brecht, ninguém consegue ser bom. O público naturalmente fica inquieto entre o que poderia ser quase uma defesa do empresariado produtivo e uma crítica a qualquer tentativa de melhorar a vida dos outros por ação caridosa. Brecht faz tudo para demolir, de uma perspectiva revolucionária, os sentimentalismos de uma esquerda que acredita na pureza e na bondade dos oprimidos.
Afastadas do horizonte as interpretações políticas mais carregadas, "A Alma Boa de Setsuan" ainda diz coisas importantes sobre o tema, tão na moda, da "ética". Temos a tendência de achar que o bom comportamento ético é consequência direta da "formação", do "caráter" de cada pessoa. Nem tanto, diz o filósofo John Doris, da Universidade da Califórnia. Leio agora seu livro "Lack of Character" ("falta de caráter"), originalmente publicado em 2002.
Com rigor e paciência, o autor reavalia uma série de experiências psicológicas, feitas desde 1928. Cito uma, rapidamente. Numa cabine de telefone, os pesquisadores deixam uma moedinha, de modo a que o usuário ache que está num dia de sorte. Fazem em seguida alguém pedir ajuda para o sortudo. A porcentagem dos que ajudam é esmagadora. Por sua vez, os que saem da cabine sem moedinha são praticamente unânimes em negar ajuda para um desconhecido.
Não importa, conclui a pesquisa, se o sujeito abordado possui um caráter solidário ou se é um egoísta rematado. Numa circunstância "feliz", é muito provável que se comporte bem. Sem moedinha, manda o próximo às favas. Claro que uma experiência isolada não responde pela integridade de uma vida. Mas os casos analisados por John Doris são muitos -alguns até assustadores, como as pesquisas de Stanley Milgram na década de 1960, que transformaram pessoas comuns em torturadores numa engenhosa experiência de laboratório.
Salvo os casos de santidade ou de psicopatia, o comportamento das pessoas varia de correto a odioso conforme alterações (por vezes mínimas) nas circunstâncias. A teoria pode ser deprimente para quem se acha dotado de bom caráter. Mas não deixa de lembrar, inversamente, a desacreditada frase que Rousseau nunca escreveu, sobre o fato de que a sociedade corrompe um ser humano naturalmente "bom". Saio assim do desencanto de Brecht, para cair no sentimentalismo de sempre. Talvez não sejam incompatíveis, afinal.

coelhofsp@uol.com.br


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